Ações a preços surreais, manias especulativas à solta, mercado insano: é bolha?
O mercado entrou em ebulição. Ações inflam em ritmo recorde e pequenos investidores criam fenômenos como o da GameStop. Entenda este momento único – e perigoso.
Um punhado de tuítes de Elon Musk bombou o preço do Dogecoin, uma cripto de terceira divisão, que disputa com outras 4 mil moedas digitais a chance de um dia, quem sabe, se tornar uma alternativa ao Bitcoin. Também pelo Twitter, Musk disse amar a loja online Etsy e imediatamente as ações passaram a subir, mas ele só estava feliz de ter comprado ali um gorro de tricô para seu cachorro.
As reações aos tuítes do excêntrico criador da Tesla são um exemplo de algo que sempre guiou o mercado financeiro, mas que hoje parece mais exacerbado do que nunca: o comportamento de manada, o ato de colocar dinheiro no que outras pessoas estão investindo sem nem saber o que é a coisa, muito menos se importar se ela tem ou não algum valor.
Essa brincadeira cria bolhas – aumentos súbitos de preço seguidos por um colapso. Sempre foi assim. Na Holanda do século 17, entre 1634 e 1636, o comportamento de manada fez com que o preço das tulipas disparasse mais de 1.000% em dois anos. No começo, os preços subiam porque havia mais gente comprando essas flores para decorar a casa. A Holanda vivia um boom econômico. A Companhia Holandesa das Índias Orientais lucrava horrores com o comércio de especiarias, trazendo pimenta-do-reino, cravo e canela das ilhas do Oceano Índico para a Europa. E uma parte considerável dos holandeses tinha acesso direto a esses lucros. A Cia. das Índias foi a primeira empresa a se financiar vendendo ações ao público. Os acionistas passaram a ter dinheiro de sobra.
Manter tulipas no jardim era um símbolo de status. Com mais gente endinheirada, e a fim de mostrar sua nova riqueza, a demanda foi lá para o alto. E os preços passaram a subir. Nisso, gente esperta começou a ganhar dinheiro. Dava para comprar um saco de bulbos de tulipa por 100 florins (o dinheiro da época) e revendê-lo por 120 dali a alguns dias.
O problema: uma hora todo mundo começou a fazer isso. Quem comprava a 120 não pretendia decorar o jardim, mas achar alguém que topasse comprar por, sei lá, 140. Esse alguém que comprava a 140 tinha a mesma coisa em mente… Isso criou um ciclo de alta absurdo, no qual o preço das tulipas era determinado não pelo valor intrínseco da flor como objeto de decoração, mas pelo fato de que sempre havia alguém que topava pagar mais caro por um bulbo na esperança de revendê-lo mais caro lá na frente.
Quando os bulbos passaram a valer mais de 1.000, a quantidade de gente a fim de comprar começou a diminuir. Se você tinha pago 1.200 pela coisa, não encontrava mais comprador. E tinha de vender, digamos, por 800. Quem comprava por 800 também se complicava, e acabava vendendo por 600 para diminuir o prejuízo. Em 1637, o preço da tulipa caiu a praticamente zero. Ninguém mais queria saber desse troço. A bolha tinha estourado.
Foram três anos entre o início da bolha das tulipas e o seu colapso. Hoje é diferente. As bolhas seguem bolhando, só que bem mais rápido. A GameStop, uma rede de lojas dos EUA, viu suas ações subirem 1.700% em meros 15 dias agora em janeiro de 2021. E logo em seguida elas devolveriam quase todo o ganho.
O motivo para a aceleração é óbvio. Não é que hoje seja mais fácil investir do que era no século 17. Hoje é extraordinariamente mais simples do que era há poucos anos.
Começou com a Robinhood, uma corretora americana fundada em 2013. Dois anos depois, ela veio com uma novidade: zerou as taxas de corretagem para investir em ações – antes, havia quem cobrasse US$ 10 por operação ou, pior, uma porcentagem sobre o valor que você investisse, como se fosse a gorjeta de um restaurante (um roubo, diga-se). Com a taxa zero foi possível fazer a real revolução: a compra ultrafracionada. Em vez de comprar um lote ou uma única ação de uma companhia, é possível arrematar US$ 1 dela. E isso dá uma ínfima fração de uma única ação, que, por sua vez, é uma nanofatia da empresa toda.
Depois de cada compra, a “recompensa” é uma animação de confetes na tela. Era o primeiro componente da chamada “gamificação” dos investimentos, mas tem mais.
Quando o usuário abre a conta na Robinhood, ganha uma fração de uma ação. Passa automaticamente a ser microacionista de alguma grande empresa americana. Só para sentir o gostinho. Se um amigo abrir a conta com o seu convite, vocês dois recebem mais um naco de uma empresa.
Há ainda o componente social: você pode ver as carteiras de outros investidores, para replicá-las se for o caso. Ao comprar uma ação, você também recebe um aviso dizendo “quem comprou X também comprou Y”, como se tivesse comprado um livro na Amazon. Assim, a Robinhood alcançou 13 milhões de clientes, quatro vezes mais que o total de investidores pessoa física do Brasil.
As inovações da Robinhood não são um problema. Se uma empresa torna o ato de investir mais simples e divertido, parabéns para ela. A mera popularização do mercado financeiro, porém, torna o mundo das finanças mais volátil. Porque quando humanos agem em bando, tendem a ser menos racionais. E a ausência de racionalidade é o terreno mais fértil que há para a formação de bolhas.
No caso da Robinhood, por exemplo. Se a ideia é ver o que os outros estão fazendo para copiar, então dá para falar na grande síndrome do nosso tempo, fermentada no coração das redes sociais: o FOMO, a sigla para fear of missing out, ou o medo de ficar de fora. Para não perder o melhor da festa, esses investidores de primeira viagem foram para plataformas como Twitter, Reddit, Discord e YouTube e lá trocam dicas de investimentos. Foi o que colocou de pé o fenômeno GameStop, a mais efêmera das bolhas e um dos mais cinematográficos episódios do mercado financeiro. Vamos a ele.
A revolta das sardinhas
Tudo começou no fórum WallStreetBet, dentro do Reddit. O canal existe há mais tempo que a própria Robinhood, desde 2012. E há mais de um ano alguns usuários da plataforma estavam inconformados com o preço da ação da GameStop, ao redor dos US$ 5. Eles escreviam dia sim, outro também que a maior rede varejista de videogames do mundo ia recuperar seus dias de ouro e o papel voltaria a subir. O problema é que a GameStop vive das vendas nas lojas físicas e, na segunda década do século 21, os gamers compram PlayStation e Xbox pela internet e depois baixam os jogos da nuvem. Era (e ainda é) difícil enxergar uma saída para o modelo de negócios da companhia.
Mas não era só isso que mantinha o preço da ação tão baixo. Uma segunda razão é que tinha gente grande do mercado financeiro apostando que elas cairiam ainda mais, o que quer dizer que a falência era inevitável.
Apostar na alta de uma ação é fácil: é só comprá-la na bolsa e esperar que ela suba. Se a empresa for saudável e estiver crescendo, provavelmente vai dar certo. Botar suas fichas na queda tem uma certa complicação.
Para entender melhor, voltemos para as tulipas. Você está na Amsterdã do século 17 bem naquele momento em que o preço das flores estava caindo. Algo te diz que essa queda será um buraco sem fundo. Então você decide fazer um dinheiro com isso.
Como? Fácil. Você vende um saco de bulbos por 800 florins, mas combina de entregar só dali a três semanas. O resto do mercado, afinal, não sabe que a queda de preços das tulipas será eterna, e que um dia elas valerão basicamente nada. Enquanto o valor não cai para perto de zero, sempre sobra alguém que ainda aposta numa reviravolta, numa nova alta dos preços – senão, não haveria comprador algum.
Bom, se você vende a 800 para entregar dali a três semanas, não precisa ter os bulbos de tulipa na mão na hora do acordo. Você simplesmente vende algo que não tem, embolsa os 800 florins e fica com o compromisso de entregar lá na frente.
Aí passam três semanas. Como você esperava, o preço da tulipa caiu para 600 no mercado nesse meio-tempo. Pronto. Agora é só usar os seus 800 para comprar o saco de bulbos por 600 e realizar a entrega que você tinha combinado. Os 200 de lucro ficam na sua mão.
Os holandeses chamavam essa operação de windhandel. Significa “comércio de vento”, já que você está vendendo algo que não possui. Nos EUA do século 19, surgiria outro termo para a mesma coisa: short selling. Em inglês, quando você diz que está “short of” alguma coisa, significa não ter essa coisa – “short of food”, “short of breath”. Vender algo que você não tem, então, virou short selling. Em português, o termo é mais formal: “venda a descoberto”, mas não carece de explicações.
O que o pessoal do Reddit descobriu é que um hedge fund, o Melvin Capital, tinha feito um caminhão de vendas a descoberto de ações da GameStop, tipo vendido a US$ 5 para ver se caía para US$ 1 e embolsava o resto – ou seja, US$ 4, mas multiplicado por milhões e milhões.
Hum… O pessoal que controla o WallStreetBets tem uma espécie de religião. Eles são contra short sellers por princípio. Acham que esse tipo de movimento só atrapalha o mercado. Quanto mais gente vende uma ação, afinal, mais o preço dela cai. Quando essas vendas são a descoberto, pior ainda. É o sujeito forçando uma baixa com ações que não possui, de olho em lucrar com a baixa que ele ajudou a criar.
Não é só o povo do WallStreetBets que não curte. Elon Musk defende que operar vendido é golpe. E não é de hoje que xinga-se muito os short sellers por aí. Em 1720, após uma queda tulipiana na bolsa de Amsterdã, o governo da Holanda proibiu o windhandel. Nesse mesmo ano, em Londres, o físico Isaac Newton perdeu o equivalente a R$ 120 milhões em dinheiro de hoje com a queda das ações da Companhia dos Mares do Sul, empresa de comércio internacional que era uma espécie de Tesla da época (uma companhia cujas ações tinham subido a patamares surrealistas). A venda a descoberto foi um dos motores para o derretimento dos papéis – e para a falência do maior cientista da história.
O presidente americano Herbert Hoover apontou os shorts sellers como um dos responsáveis pelo crash da bolsa americana, em 1929. Um desses short sellers, aliás, fez a fortuna de gerações de sua família apostando na queda das ações americanas. Foi Joseph Kennedy, pai de John. Mais tarde, ele explicaria em sua autobiografia de onde veio o feeling para apostar numa quebradeira: “Quando o engraxate está dando dicas sobre o mercado, é hora de pular fora”.
A história do engraxate talvez seja boa demais para ser verdade. Talvez não. Bernard Baruch, outro tubarão de Wall Street e mestre do short selling, foi ainda mais exagerado que Kennedy para retratar o momento: “Meu cozinheiro tinha conta em uma corretora. Até o mendigo que ficava em frente ao meu escritório estava me dando dicas. Acho que ele colocava o dinheiro das esmolas em ações”.
O caso da GameStop, quase 100 anos depois, vingaria o engraxate e o mendigo. Foi a primeira vez que pequenos investidores (chamados de sardinhas, em contraposição aos tubarões) agiram de forma coordenada para destruir um short seller peso-pesado.
As sardinhas do WallStreetBets passaram a comprar as ações da GameStop de forma combinada, para fazer o preço subir. A ideia era sabotar o pessoal do Melvin Capital e quem mais estivesse apostando contra a loja de games. Era muita gente, já que tinha mais ações da GameStop vendidas a descoberto do que papéis da empresa para negociar na bolsa.
Essas primeiras compras começaram a inflar o preço da ação – justamente o pior pesadelo para o short seller. A ideia era fazer uma operação que o mercado chama de squeeze, um “aperto” contra quem fez vendas a descoberto.
Para bombar os preços mais ainda, e apertar de vez os short sellers contra a parede, o pessoal do fórum pulou para um outro tipo de investimento, capaz de acelerar ainda mais a alta de uma companhia na bolsa – e com muito menos dinheiro investido. Estamos falando de contratos de opções de compra.
Esses contratos são como um voucher, um vale que serve para comprar uma ação no futuro por um preço X. Vamos dizer que a ação hoje custa 20 e você adquire um vale para comprá-la a 25 dali a um mês. Você só compra o vale a 25 porque acredita que a ação subirá a 30, e terá feito um belo negócio. Quanto custa esse vale? Depende. Nesse caso da GameStop, deveria ser baratinho quando a onda começou, coisa de centavos, porque ninguém acreditava na valorização da empresa – e portanto ninguém queria ter o direito de comprar a ação por um valor maior que o de mercado.
Do outro lado desse contrato tem alguém que vende a opção de compra. Normalmente é um banco que vende o vale, mas não tem o menor interesse em acompanhar o que está acontecendo com a GameStop. Por isso, ele imediatamente compra a ação na bolsa, para se proteger da oscilação.
Se o preço da ação começa a subir, ele compra mais papéis no mercado. Isso mitiga perdas, caso a ação siga subindo.
Essas compras para fazer lastro, por outro lado, aumentam mais a demanda pelos papéis. Ou seja: acaba servindo de impulso para que elas subam mais ainda. Isso elevou a alta da GameStop.
E a turma que jogava contra ficava cada vez mais em apuros. Veja bem, se o short seller tiver um cofre cheio e a confiança de que a alta é passageira, ele até pode segurar a onda enquanto a ação sobe. Basta separar mais dinheiro em garantia para mostrar que não dará um calote – que um dia vai, sim, entregar as ações que vendeu sem ter. Mas eventualmente eles entram em pânico. No início do caso da GameStop, os short sellers não sabiam quando, ou se, a alta pararia. Resultado: começaram a comprar ações aos montes para ter como entregar (e “fechar sua posição”, como dizem no mercado). Nisso, enquanto as ações da GameStop subiam a US$ 120, US$ 130, os short sellers passaram a comprar loucamente para encerrar suas posições, ainda que amargando prejuízos – quem vendeu a descoberto por US$ 20 e teve de encerrar a brincadeira comprando a US$ 120 não fica nada feliz, mas melhor assim do que ter de comprar, digamos, por US$ 250 dali a algum tempo.
Essas compras a valores estratosféricos para fechar posições bombaram mais ainda o preço das ações. Quase que da noite para o dia, o valor de mercado da GameStop (o valor somado de todas as ações da empresa) saltou de modestos US$ 1,9 bilhão para US$ 33 bilhões. Tulipou geral.
As ações da GameStop saíram de US$ 19,95 no dia 12 de janeiro para US$ 347 no dia 27, uma valorização de 1.700% em duas semanas. Só o Melvin Capital perdeu 53% de seu patrimônio (US$ 4,5 bilhões) com o short squeeze. Era a vitória das sardinhas contra os tubarões. Um evento não apenas raro, mas inédito até então.
Nunca um movimento coordenado de pequenos investidores havia lucrado às custas dos grandes. O normal era o contrário, quando figuras como Joseph Kennedy e Bernard Baruch se davam bem, e os engraxates e cozinheiros não tinham mais nada a fazer do que chorar o leite derramado.
O pico da bolha da GameStop foi no dia 27/1 mesmo. Em 4/2, as ações tinham perdido 85% do valor. Natural. Uma multidão de investidores, pequenos e grandes, saiu correndo para vender suas tulipas antes que não houvesse mais interessados no mercado. O preço derreteu. A bolha tinha estourado e o estrago estava feito.
Esse ataque de cinema aos short sellers mostrou o poder dos pequenos investidores. Comunicando-se via memes (como emoji de foguetinho para indicar apostas na alta de alguma ação), e com um vocabulário cheio de gírias próprias (veja na página 29), eles criaram uma bolha para chamar de sua e surfaram nela. Só tem um detalhe: eles não são os únicos sopradores de bolhas do mercado. O maior deles, inclusive, mal sabe o que é um meme e nunca falou uma gíria: é o Fed, o banco central dos EUA.
A impressora de dólares
As ações da GameStop não subiram só pelos motivos que listamos aqui. Muita gente no mercado financeiro (pessoas comuns, bancos, fundos de investimento) detectou a onda de alta e passou a fazer suas apostas na tal loja de games. Tanto que, até o fechamento desta edição, as ações da empresa ainda estavam na casa dos US$ 60, bem acima dos US$ 20 do dia 12 de janeiro. E, não, não havia razão para sustentar a alta. O mercado já sabia que ela tinha rolado por conta de um ataque especulativo, não por alguma mudança nas perspectivas de lucro da empresa no futuro. Mesmo assim, ainda havia um caminhão de dinheiro ali, torcendo para a chegada de uma nova alta.
Isso é indício de que há dólares demais em circulação. E o responsável é justamente quem produz os dólares, o Fed. Há um ano, havia US$ 15 trilhões em circulação na economia americana, contando o dinheiro em contas correntes, contas remuneradas e as notas de papel. Essa quantia cresce a uma taxa relativamente constante de US$ 500 bilhões ao ano. Natural. Bancos centrais injetam dinheiro novo da economia boa parte do tempo. Quando há uma baixa de juros, é exatamente isso que acontece: imprimem moeda para emprestar aos bancos. Isso aumenta a oferta de crédito no mercado. O crédito faz o consumo crescer. Mais consumo = mais empregos. Mais empregos = uma economia mais forte. Beleza.
E aí veio a pandemia. A quantidade de dinheiro em circulação na economia americana saltou daqueles US$ 15 trilhões para US$ 19,5 trilhões. São US$ 4,5 trilhões em dinheiro novo, rodando pelo mercado. O Fed, hoje, faz o papel que a Companhia Holandesa das Índias Orientais fez no século 17: traz o dinheiro para a praça. Com a diferença de que não precisa fazer comércio no Oceano Índico para obtê-lo. Basta ligar a impressora. Estilo Casa de Papel.
Esse dinheiro novo foi impresso para bancar o combate à crise econômica que se seguiu à pandemia, como os auxílios emergenciais e as compras de equipamentos hospitalares. Ainda bem. Sem ele, a economia dos EUA poderia colapsar, tragando o resto do mundo para o abismo. Mas dinheiro é igual infiltração. Nunca fica num lugar só. Vai se espalhando. Uma família pobre que recebe o auxílio vai no Walmart comprar comida. Uma parte desse dinheiro novo, então, vira lucro para os acionistas do Walmart. Eles pegam esse lucro e fazem o que com ele?
Poderiam comprar títulos públicos. Nisso, o dinheiro voltaria para o governo. E tudo certo. Mas não. Os juros básicos nos EUA estão perto de zero, justamente para manter o crédito respirando. E, quando os juros básicos estão nesse patamar, os títulos públicos rendem basicamente zero. A grana, então, vai parar na bolsa de valores.
Foi esse dinheiro, escoado dos programas de ajuda governamental pelas veias e artérias da economia, que possibilitou o caso GameStop. E é esse dinheiro que mantém os índices da bolsa americana próximo de seus recordes históricos, mesmo com o desemprego bombando e a economia patinando.
Todos os governos do mundo estão com as impressoras de dinheiro ligadas. Inclusive o nosso. A diferença é que a impressora de dólares é a que faz a economia global girar. Se um país comum coloca dinheiro demais em circulação, a moeda desvaloriza em relação ao dólar. Quando se fabrica uma quantia estupenda de dólares, a própria moeda americana perde valor. É isso que tem causado a chamada “inflação dos ativos”. Em português mais claro: é isso que tem causado as valorizações expressivas na bolsa americana. E nas do resto do mundo também.
Em novembro do ano passado, por exemplo, o Ibovespa viveu sua terceira maior alta mensal (15,9%). Parte dela foi financiada por dinheiro gringo – novembro também foi o mês em que mais entraram dólares na bolsa brasileira em todos os tempos.
O dinheiro do Fed tem inflado mais do que ações. O bitcoin, que dobrou de preço desde o auge da bolha de 2017 e agora vale US$ 35 mil, também virou um destino para investidores, assim como outras criptos, como o Dogecoin, aquela bombada por Elon Musk (mesmo que, até prova em contrário, qualquer criptomoeda tenha valor intrínseco menor que o de uma tulipa).
Cresceram ainda os investimentos do tipo cheque em branco, em que um grande investidor faz um “IPO falso”, sem ter uma empresa. Capta o dinheiro de investidores, depois compra um negócio para chamar de seu. Qual negócio? O que der, por isso a ideia do cheque em branco. Esse tipo de operação, chamada de SPAC, captou quase tanto dinheiro quanto os IPOs tradicionais no ano passado. Foram US$ 82 bilhões em SPACs e US$ 85 bilhões em IPOs, e só neste ano já foram mais US$ 25 bilhões em captações por cheque em branco.
Com tanto dinheiro circulando e tantos investimentos ultravalorizados, é natural que cada vez mais gente passe a achar que o mercado está batendo em um teto. E aí entram, mais uma vez, os short sellers.
Só no ano passado, a Tesla se valorizou mais de 700%. E investidores que apostavam na queda das ações perderam US$ 38 bilhões – não houve ataque orquestrado, o mercado ama a Tesla, e boa parte dos dólares novos do Fed está indo parar na empresa. A Apple também quebrou as pernas dos short sellers: US$ 7 bilhões viraram pó em apostas malfadadas pela queda nas ações da empresa de Tim Cook.
Esses tombos, porém, não significam que os short sellers tenham pisado no freio. Pelo contrário. Eles seguem firmes acreditando que a Tesla está cara demais. E dobraram as apostas contra ela.
Talvez isso explique por que Musk não morre de amores pelos short sellers. Em uma de seus tuítes, o homem mais rico do mundo disse que “ninguém vende casas e carros que não tem”. Vende, sim. A própria Tesla vendeu, em 2018. Precisou pedir mais pagamentos adiantados aos clientes que tinham encomendado seus carros para financiar a produção. Ou seja: estava “short of cars”, e vendeu algo que não tinha, com a promessa de entregar algum dia. Mas essa é uma outra história.
O ponto é: o preço das ações está inflado. E o mercado hoje é bem mais frenético do que na época em que Bernard Baruch reclamava de “seu cozinheiro ter conta em corretora”. A Apple mesmo levou décadas para chegar a US$ 1 trilhão em valor de mercado, em 2018. E agora o preço somado de suas ações já é de US$ 2,2 trilhões
Mas nada disso significa que estamos próximos de um novo crash de 1929. Os dólares novos que bombam as cotações também fazem crescer o lucro das empresas que emitem as ações. E tudo acaba mais ou menos na mesma. Não existia impressão maciça de dinheiro em 1929.
A atuação dos short sellers também ajuda o mercado como um todo. Esses caras, quando apostam nas quedas e acabam forçando algumas, servem de contrapeso à euforia. E ajudam a trazer preços lunáticos de volta para o planeta Terra.
O risco é a economia global não crescer depois de tanta injeção de dinheiro novo. Caso isso aconteça, haverá muito mais dinheiro em circulação do que coisas para comprar com esse dinheiro. E teremos uma inflação generalizada – em dólar, em real, em euro. Para matar essa futura inflação, os juros terão de subir. Essa é a única forma de drenar dinheiro da economia, afinal. Aí, sim, o mercado de ações perderá o embalo. Mas não se sabe quando essa alta nos juros vai chegar nem se ela virá de fato com força. Até lá, não faltarão novas aventuras no mercado financeiro. Aproveite, mas com cuidado.