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A primavera cripto chegou?

A aprovação dos ETFs de Bitcoin nos Estados Unidos marca uma nova era para o universo da principal criptomoeda. Agora, ela deixa de protagonizar um mercado paralelo e pouco regulado e se torna parte do sistema financeiro tradicional, sob as asas de players tradicionais. Ao mesmo tempo, porém, o Bitcoin fica cada vez mais distante do seu objetivo original. Entenda.

Por Bruno Carbinatto| Design: Tamires Mazzo | Edição: Alexandre Versignassi
2 fev 2024, 14h00
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 (Tamires Mazzo/VOCÊ S/A)
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á era final de tarde do dia 9 de janeiro quando um tweet chacoalhou o mundo das criptomoedas. A conta oficial da SEC (Securities and Exchange Commission), o órgão regulador americano equivalente à nossa CVM, publicou uma notícia há muito aguardada: a agência tinha finalmente aprovado o pedido de várias gestoras de fundos americanas para oferecerem ETFs de Bitcoin nas bolsas dos EUA.

Fazia 10 anos que se tentava, sem sucesso, abrir esse mercado na maior economia do mundo. A história só mudou quando grandes nomes, como BlackRock e Fidelity, entraram na jogada, pressionando o órgão a aprovar a negociação desse novo produto (cujos detalhes explicaremos adiante). Aquele tweet, então, marcaria uma mudança e tanto no universo cripto. Não à toa, a publicação ultrapassou 4,6 milhões de visualizações em menos de uma hora.

Só tem um problema. Pouco tempo depois, a agência esclareceu que a notícia era fake. Na verdade, o perfil da SEC na plataforma fora hackeado e alguém postou a mensagem falsa. O próprio X (Twitter) confirmou a invasão à conta.

Foi uma grande ironia. Um dos motivos sempre alegado pela SEC para negar os ETFs de Bitcoin foi que o mercado de criptomoedas é pouco regulado e sujeito a fraudes. Ela própria é o órgão responsável por fiscalizar e evitar isso, e foi por meio de um perfil oficial que o episódio rolou. Pegou mal.

De qualquer forma, o tal hacker não escolheu o dia por acaso. Já se esperava que a SEC aprovaria esse investimento naquela semana, e a notícia para valer, agora verdadeira, veio no dia seguinte, 10 de janeiro.

A expectativa, na verdade, vinha de meses antes, quando as grandes gestoras entraram com seus pedidos. Considerava-se inevitável um sinal verde em algum momento. Nessa onda de otimismo, o preço da criptomoeda subiu forte em 2023. Ele fechou o ano com alta de 155%, a US$ 43,7 mil – depois de ter caído 67% em 2022.

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Nessa guinada de humor, muita gente começou a decretar o fim do “inverno cripto”, o apelido dado para os tempos sombrios do Bitcoin, quando o preço derreteu de US$ 65 mil, em novembro de 2021, para US$ 15 mil um ano depois, por conta dos juros altos nos EUA e dos vários escândalos no universo das criptos, como a quebra da corretora FTX. Criou-se até um novo termo para descrever a era atual: “primavera cripto”, o início de uma nova era para o Bitcoin e seus colegas. Mas será mesmo?

O que é um ETF e o que muda

ETF é a sigla de Exchange Traded Fund, ou fundo negociado em bolsa. Em um fundo comum, o investidor paga para um gestor alocar o dinheiro nas opções que julgar melhor (obedecendo certas regras). No caso dos ETFs, isso não é necessário: você compra o fundo na bolsa e ele automaticamente seguirá a variação de um índice. Ao investir no ETF BOVA11, por exemplo, seu dinheiro é distribuído entre as 87 ações do Ibovespa, o mais importante índice da B3, respeitando os pesos de cada papel ali dentro.

Existem outros tipos de ETF, como de renda fixa ou commodities. E, claro, o protagonista desta história: o ETF de Bitcoin. Trata-se de um fundo que segue justamente o preço da criptomoeda.

Ok, mas o que muda, na prática? A vantagem mais óbvia para a cripto é que os ETFs representam uma nova maneira de investir no Bitcoin, mais simples e fácil, sem que o público tenha necessariamente de comprar a criptomoeda (quem faz isso é o gestor do fundo). A chegada dos ETFs de Bit- coin pode atrair um novo investidor, que não tinha interesse na cripto por não ter como adquiri-la pelos canais que está acostumado a usar.

Antes do ETF, investir em Bitcoin significava gerenciar carteiras virtuais (e suas complexas chaves de acesso) ou ter contas em corretoras de criptomoedas, as chamadas exchanges – que na média não possuem uma boa reputação de segurança digital, dado o longo histórico de golpes e ataques hackers. Nesse novo veículo aprovado pela SEC, basta comprar o fundo via home broker, um ambiente protegido e familiar.

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Vale lembrar que, nos EUA, investir em bolsa é algo comum: quase 60% dos americanos possuem ações, segundo o Gallup. Ou seja, uma imensidão de possíveis novos compradores com a chegada dos ETFs.

De certa forma, a SEC adiou a decisão até o último momento. Há pedidos para a liberação dessa classe de investimentos desde 2013, e todos foram negados. Em 2021, a agência reguladora aprovou fundos que replicam índices de mercado futuro do Bitcoin. Ou seja, são ETFs mais complexos, que acompanham as apostas sobre a variação da cripto, não o preço do ativo em si, à vista.

Também em 2021 a CVM brasileira aprovou os ETFs de Bitcoin, três anos antes da sua prima americana. E foi além: aqui também podem existir fundos de outras criptos. Na B3 temos, por exemplo, o HASH11, da gestora Hashdex, que segue um índice que reúne uma cesta de criptomoedas. Também há fundos exclusivos de Bitcoin, como BITH11 e QBTC11.

Voltando para os EUA. Há uma segunda mudança, mais subjetiva, que ajuda a valorizar o Bitcoin. A chegada dos ETFs funciona como uma espécie de selo de confiança, um carimbo das autoridades e dos grandes players do mercado financeiro de que ele é um investimento válido – isso após anos sendo visto como algo alternativo, e, para os mais conservadores, lixo puro.

Afinal, os fundos serão listados nas bolsas americanas, a NYSE e a Nasdaq, e geridos por gigantes de Wall Street, o que representa um abismo de confiança em relação às exchanges, marcadas por escândalos nos últimos anos. A quebra da FTX, em 2022, foi um dos grandes baques do mundo cripto, e seu criador, Sam Bankman-Fried, acabou condenado por fraude. Até mesmo a Binance, a maior exchange da Terra, foi multada em US$ 4 bilhões por lavagem de dinheiro.

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(Arte/VOCÊ S/A)

O fato de se tornar um ativo regulado, sob o domínio de players que precisam seguir uma série de regras e são vigiados ativamente pela SEC, marca uma guinada. Tanto que a aprovação dos ETFs levou a diversas projeções de alta. Algumas extravagantes, inclusive.

Cathie Wood, CEO da Ark Invests, acha que o Bitcoin pode chegar aos US$ 650 mil até 2030 (dos US$ 42 mil no final de janeiro). E esse é só o cenário base. No mais otimista, cada unidade da cripto pode valer algo entre US$ 1 milhão e US$ 1,5 milhão, diz ela. E a executiva cita justamente a aprovação dos ETFs como o ponto de virada para o ativo. Natural: a Ark é uma das gestoras que teve seu pedido aprovado; nas primeiras semanas de negociação, seu fundo foi o quarto que mais captou clientes.

O foco agora está nos pedidos de outros ETFs de criptomoedas que ainda estão pendentes na SEC. O mais avançado nesse sentido é o ETF de Ethereum à vista, que, segundo o JP Morgan, tem 50% de chances de ser aprovado. Novamente as grandes gestoras, como BlackRock e Fidelity, entraram na jogada.

Todo esse otimismo, em conjunto, é o que foi chamado de primavera cripto. Mas fica a pergunta: ela é mesmo sustentável no longo prazo? Vejamos.

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O Bitcoin foi criado para substituir as moedas fiduciárias. Paradoxalmente, a aprovação dos ETFs deixa esse objetivo ainda mais distante.

Para que serve um Bitcoin

Há uma outra ironia nessa história toda, além daquela do tweet falso da SEC. Se parte dos entusiastas vibrou com a aprovação dos ETFs e o que eles podem significar para o Bitcoin, uma outra minoria não curtiu a novidade. É que ela vai contra as raízes ideológicas da cripto,
naturalmente “antissistema”.

O Bitcoin foi criado em 2008 com um objetivo ambicioso: substituir o dólar, o real, o euro e todas as outras moedas fiduciárias. “Fidúcia” é sinônimo de confiança, e resume o motivo pelo qual damos valor ao dinheiro – porque confiamos que ele vale alguma coisa, que não se trata apenas de um pedaço de papel ou de números na tela do app do banco. Mas até pouco tempo atrás dinheiro valia
ouro. Literalmente.

Até 1933, o governo americano guardava 1,33 grama de ouro para cada dólar em circulação, e os cidadãos podiam trocar suas notas verdes por metal precioso na boca do caixa. O Estado garantia a conversibilidade automática, a um preço fixo. Era o padrão-ouro. Só se produzia dinheiro novo se o governo arranjasse ouro para servir de lastro.

Roosevelt acabou com isso – de modo a poder imprimir o dinheiro necessário para tirar os EUA da Grande Depressão, sem o inconveniente do lastro. Na Europa, o padrão-ouro já não tinha suportado a Primeira Guerra Mundial – o metal precioso tinha saído dos cofres estatais para bancar
despesas militares.

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Em 1944, o sistema voltou numa versão mais light. O Tesouro americano passou a guardar 0,81 grama de ouro para cada dólar em poder de governos estrangeiros, de modo que eles pudessem fazer a troca automática por ouro quando quisessem – uma forma de colocar o dólar como centro da economia global, e que o resto do mundo achou um bom negócio.

Mas em 1971 o governo Nixon aboliu essa regra. E o padrão-ouro, que tinha passado séculos conferindo valor intrínseco às notas de papel, deixava
de existir.

Hoje, só aceitamos dinheiro porque, coletivamente, confiamos no sistema financeiro – no qual os países, por meio de seus bancos centrais, criam grana nova sempre que acham necessário. E todo mundo concorda em usá-la.

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(Tamires Mazzo/VOCÊ S/A)

Mas nem todo mundo confia de fato nesse modelo. Alguns acham que ele está fadado ao fracasso. Que, inevitavelmente, a capacidade de governos criarem dinheiro do nada, sem lastro, levará a uma hiperinflação global, capaz de reduzir a zero o valor de todas as moedas fiduciárias. É uma crença apocalíptica, e que não faz sentido, porque as próprias nações têm mecanismos monetários para combater a inflação quando ela começa a sair das rédeas (caso dos juros dos bancos centrais). Mas em certos grupos, como os dos anarcocapitalistas, a desconfiança em relação aos governos fala mais alto.

Esse sentimento foi ao ápice em 2008, com a crise global. Naquele mesmo ano, um certo Satoshi Nakamoto propôs a criação de uma criptomoeda para contornar a armadilha da moeda fiduciária – como bem sabem os fãs de cripto, esse é provavelmente um pseudônimo do inventor do Bitcoin; a pessoa real por trás dele permanece desconhecida.

No famoso “white paper” do Bitcoin, publicado naquele ano, Satoshi projeta um “sistema de pagamento eletrônico baseado em criptografia em vez de confiança, permitindo que quaisquer duas partes dispostas negociem diretamente uma com a outra, sem a necessidade de um intermediário”. Nascia ali uma moeda descentralizada e baseada em blockchain – o sistema que impede o mesmo Bitcoin de ser gasto duas vezes pelo mesmo usuário, emulando o que os bancos, entidades centralizadas, já faziam. Mais importante: por trás de tudo havia a ideia
de escassez.

O objetivo era imitar o ouro. O metal amarelo tem valor intrínseco porque é raro, escasso. O Bitcoin também: só existem 21 milhões de unidades dele no mundo, das quais 19,5 milhões foram mineradas (o restante será desenterrado das profundezas do sistema até o ano de 2140).

O Bitcoin, então, teria dois trunfos: possuir um valor intrínseco, conferido pelo suprimento limitado, e ser imune à inflação, assim como o ouro e diferente da moeda fiduciária, que desvaloriza com tempo pelo simples fato de os bancos centrais colocarem cada vez mais dinheiro novo em circulação.

Tudo com a diferença de que, bem, o ouro tem usos concretos no mundo: o principal deles, servir de matéria-prima para joias. O Bitcoin não. Só o fato de ser algo escasso não basta para que esse algo tenha valor. As pessoas precisam ter interesse pela coisa. Por isso a cripto nasceu valendo zero. Mas ganhou algum valor quando os primeiros compradores começaram a apostar que um dia ela substituiria as
moedas fiduciárias.

Os primeiros bitcoiners, então, eram ideológicos. Mas esses são minoria agora. À medida que a cripto foi se valorizando, cada vez mais gente comprava com a intenção de vender lá na frente, e não porque acreditavam que ele se tornaria um meio de pagamento universal. O negócio foi avançando tão forte que os players tradicionais do mercado entraram nele.

A pandemia foi um ponto de virada nesse sentido. Quando os governos mundo afora baixaram os juros para estimular o consumo na crise, injetaram toneladas de dinheiro novo na economia global. Parte dele foi parar em investimentos cada vez mais arriscados, em busca de ganhos maiores. Muita gente apostou, então, no Bitcoin e em outras criptos. Em novembro de 2021, o Bitcoin chegou ao seu pico histórico, de US$ 65 mil. Naquele mesmo mês, o valor de mercado de todas as criptos, combinadas, se aproximou dos US$ 3 trilhões – com o Bitcoin sozinho respondendo por US$ 1,2 trilhão.

Isso também marcou uma mudança de perfil no mercado. Até então, o Bitcoin era visto como um investimento oposto aos tradicionais, uma espécie de “proteção” em relação a crises que derrubavam ações e outros ativos. Exatamente como o ouro é, diga-se. Tanto que, até 2020, havia pouca correlação entre os movimentos das bolsas globais e o preço da cripto.

Só que, na era dos juros baixos, o Bitcoin começou a entrar numa trajetória similar às ações e ao mercado em geral. Quem alerta isso há tempos é o FMI, que publicou em 2023 um artigo mostrando que o principal fator que afetava o preço da cripto era a política monetária americana – o mesmo que guia as bolsas no mundo todo.

Ou seja: o Bitcoin se torna, cada vez mais, um ativo mainstream, parte do sistema. Na contramão das suas raízes históricas, e também de seu objetivo original. O uso como meio de pagamento, como propôs Satoshi Nakamoto, nunca prosperou de fato. Com a entrada dos grandes fundos na jogada, o caráter de “comprar para vender mais caro lá na frente” fica ainda mais ressaltado. Deixa de existir a parte de “substituir a moeda fiduciária”. As pessoas (e os fundos) compram Bitcoin com moeda fiduciária com o intuito de multiplicar sua poupança de moeda fiduciária. Ele aumenta a demanda por dólares (e euros e reais), em vez de diminuir. Pode ser bom para o preço da cripto, mas não para a filosofia que sustenta a própria existência do Bitcoin.

Antes visto como um ativo de “proteção” em relação aos mercados tradicionais, o Bitcoin tem seu preço cada vez mais correlacionado à performance das bolsas.

Quanto vale um Bitcoin

Não é porque o Bitcoin está entrando cada vez mais fundo nas entranhas do sistema financeiro tradicional que ele tenha virado uma unanimidade. Pelo contrário. Há ausências notáveis. A principal é a Vanguard, a segunda maior gestora de fundos do planeta, com US$ 8 trilhões sob sua custódia.

A empresa tem um perfil reconhecidamente mais conservador que sua rival BlackRock (a maior, com US$ 10 trilhões sob custódia). E já deixou claro: não planeja lançar nenhum ETF de Bitcoin (ou de qualquer outra cripto). Em um comunicado recente, a gestora explicou que esse tipo de ativo não é apropriado para carteiras de longo prazo. Tirando os floreios: a Vanguard não acredita que o Bitcoin tenha futuro.

E ela não é a única entre os grandes nomes do mercado. Talvez o melhor exemplo disso – e que não recorre a eufemismos – é Warren Buffett, o maior investidor vivo. Para ele, o “valor justo” do Bitcoin é zero. “Se você me oferecesse todos os Bitcoins do mundo por US$ 25, eu não aceitaria. O que eu faria com eles? Eu teria de vender de volta para você. O Bitcoin não produz nada”, disse ele em 2022.

Se você me oferecesse todos os Bitcoins do mundo por US$ 25, eu não aceitaria. O que eu faria com eles?

Warren Buffet, CEO da Berkshire Hathaway

Os entusiastas mais ideológicos ainda apostam que a cripto vai, um dia, substituir as moedas fiduciárias – e portanto terá um uso concreto. Mas, como vimos, isso parece cada vez mais distante.

É fato que o Bitcoin tem se mostrado um ativo resiliente aos longos dos anos, atraindo tanto investidores de varejo quanto os tubarões do mercado, mesmo sem ter fundamentos sólidos. Seu gráfico relembra mais uma cordilheira, com vários picos e vales, do que uma única montanha – como é comum em bolhas financeiras, que acumulam altas extraordinárias e colapsam rapidamente.

Só que há um enorme paradoxo ali. Quanto mais o Bitcoin se torna mainstream, mais se distancia do seu argumento original, que poderia justificar algum valor para ele. De novo: a cripto foi criada para ser uma alternativa ao sistema tradicional. Ao se tornar apenas mais um membro desse mesmo sistema, ela perde força como uma ferramenta de pagamentos libertária. Torna-se algo meramente especulativo. Menos como o ouro e mais como uma bolha.

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