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A origem da bolsa de valores

A Holanda do século 17 criou uma maneira engenhosa de financiar suas grandes navegações: vender "partes" da empreitada para o público, numa grande vaquinha. Nascia ali a Companhia Holandesa das Índias Orientais – primeira empresa de capital aberto da história. Conheça a saga que deu origem ao mercado financeiro.

Por Alexandre Versignassi | Ilustrações: Sharisy Pezzi | Design: Kauan Machado
Atualizado em 7 fev 2024, 17h16 - Publicado em 11 jan 2024, 18h57
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    bolsa de valores veio do pântano. Do pântano que a Holanda era na Idade Média. Um quinto do território que o país tem hoje estava debaixo d’água, e o resto sofria com enchentes um ano sim e outro ano também. Natural: a Holanda fica encurralada entre o mar do Norte e a boca de dois rios gigantes, o Reno, que desce da Alemanha, e o Mosa, que chega da França. O delta dos dois se junta no Leste dos Países Baixos, formando um labirinto de rios menores.

    No que dependesse da natureza, não era para ninguém viver nessa região. E fora uma meia dúzia de pescadores ninguém vivia mesmo. Mas essa foi a sorte grande do lugar: o feudalismo não fincou raízes por lá. Enquanto no resto da Europa os agricultores viviam em estado de semiescravidão, trabalhando para poucos e gordos latifundiários (também conhecidos como nobres), na molhada Holanda muitos eram donos do próprio nariz: plantavam, pescavam, vendiam e compravam por conta própria.

    Não que aquilo fosse uma comunidade hippie medieval. Havia também nobres, donos de terras maiores. Mas o modelo feudal de trabalhar na terra em troca de casa e comida não pegou. Boa parte da labuta, afinal, era tirar a própria Holanda debaixo d’água para ter onde plantar e criar gado. Para tirar terras da água ou afastar a ameaça constante de enchente nas partes secas, só com muito trabalho coletivo.

    Os holandeses aprenderam a se unir para domar a natureza. Construíram represas, milhares de canais para drenar a água das terras aráveis e moinhos para bombear essas águas. Os nomes das maiores cidades da Holanda ecoam esse passado: Dam significa “represa”; Amsterdã, então, é a represa do rio Amstel; Rotterdã, a do rio Rotte… Os sobrenomes típicos dos Países Baixos também são molhados: Van Damme (“da represa”), Van Dijck (“do dique”). Os séculos de trabalho em equipe fixaram um caráter democrático e humanista na região. Um ditado deles ajuda a entender esse espírito: “Deus criou o mundo; os holandeses criaram a Holanda”.

    Numa cultura assim, em vez de feudos enormes, você tinha propriedades divididas entre as pessoas que ajudaram a tirá-las debaixo d’água. Em vez de trabalho em troca de comida, trabalho em troca de salário – mais o grande efeito colateral dessa prática: um comércio vivo. Enquanto no resto da Europa a circulação de dinheiro entre os mais pobres caía em desuso, já que ninguém tinha, nos Países Baixos ela era pujante.

    Essa mistura de engenhosidade, trabalho coletivo e economia voltada para o comércio transformou o lugar numa ilha de capitalismo. Quando o Renascimento começou a dar as caras no Velho Mundo, a Holanda já tinha largado na frente.

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    Tudo acontecia em ritmo acelerado. A pesca, por exemplo, já era industrial nos anos 1500. Os holandeses tinham transformado seus barcos em fábricas. Eles eram projetados de modo que a tripulação pudesse limpar e estocar os peixes em barris de sal a bordo. Com isso, cada navio podia passar dois meses em alto-mar pescando ininterruptamente, com tripulações de 20 a 30 homens. Em 1560, a Holanda tinha 400 barcos-fábrica desses – a maior parte de propriedade de investidores urbanos.

    Ilustração de um quebra cabeça sendo montado em cima de uma mesa, cenário medieval.
    (Sharisy Pezzi/VOCÊ S/A)

    A criação de gado também era industrial. Apesar da imagem bucólica das vacas holandesas, o povo dos Países Baixos foi pioneiro na criação de gado confinado – em que o boi vive trancado num cubículo se entupindo de ração até ir para o corte. Péssimo negócio para o boi, mas ótimo para quem cria: eles engordam mais rápido, e a produção de carne bomba. A agricultura também entrou nessa onda. Eles importavam grãos e deixavam a terra para culturas mais valiosas: cânhamo para as velas dos navios, lúpulo para as fábricas de cerveja, linho para os vestidos das mulheres – mais tarde viria o tabaco; e as tulipas.

    Tudo isso transformou a Holanda de um pântano pegajoso em uma potência econômica. Em 1581, ela já era uma república – a primeira na Europa desde que Roma tinha virado uma ditadura, em 27 a.C. No ano de 1595, Amsterdã sozinha já controlava um volume de comércio maior que o da Inglaterra e o da França juntas (mesmo tendo um PIB bem menor).

    Mas a hora da Holanda ainda não tinha chegado. O negócio mais lucrativo daquele tempo estava nas mãos dos portugueses (e da Espanha, que tinha anexado Portugal em 1580). Era o comércio de especiarias. Só os ibéricos compravam pimenta, cravo, canela, noz-moscada e cia direto na fonte, a Ásia, para revender na Europa – a um preço 10 vezes maior.

    Mas a Holanda tinha um produto de exportação que se mostraria valioso: marinheiros, calejados pela cultura pesqueira. O que não faltava nos navios de Portugal era holandês. Um deles, nascido em Utrecht, ao sul de Amsterdã, era conhecido em Lisboa como Arnaud de Hollanda. O marinheiro participou de uma viagem portuguesa ao Brasil em 1525, fincou residência em Pernambuco e deu origem à família Buarque de Holanda. Mas isso é só uma curiosidade. Importante mesmo para a nossa história aqui foi outro sujeito: Jan Huygen van Linschoten.

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    Jan Huygen passou nove anos fazendo a ponte marítima Portugal-Índia em navios lusitanos e, quando voltou para a terra natal, lançou um livro bombástico, contando tudo o que os portugueses tinham aprendido em quase um século de comércio com o Oriente: rotas de navegação, direção dos ventos, mapas dos melhores lugares para comprar especiarias, tabelas de preços dizendo quanto ouro levar para comprar tantos sacos de tempero. Só faltou encartar cupom de desconto.

    O livro, chamado Relato de uma viagem pelas navegações dos portugueses no Oriente, veio a público em 1596. Mal ele tinha saído, e os holandeses começaram a içar velas para tentar a sorte no oceano Índico. Em 1600, já havia seis empresas na Holanda operando navios mercantes para a Índia, seis “Companhias das Índias”, como chamavam esse tipo de empreitada. O livro de Huygen, por sinal, chegou também à Inglaterra, que fundaria sua Companhia das Índias no ano 1600. Começava a corrida do tempero.

    O maior problema nessa corrida, porém, era arranjar a gasolina – o dinheiro para financiar as expedições. A fórmula tradicional era a portuguesa: reunir banqueiros, levantar empréstimos, pedir ao rei… Mas, mesmo com as promessas de lucro pornográfico, não era tão simples achar gente disposta a correr o risco. Principalmente num país sem o know-how dos portugueses para grandes navegações. Dos 22 barcos que tinham saído da Holanda para o Oriente em 1598, só 12 voltaram – índice de perda que Portugal já havia superado. Haja poder de persuasão para convencer investidores a arriscar seu ouro numa dessas.

    A outra solução seria diminuir substancialmente o risco da empreitada. E foi o que eles conseguiram. Como? Chamando não apenas um ou dois megainvestidores para bancar a operação. Mas centenas. Cada um daria um pouco de dinheiro em troca de um pouco do lucro, caso ele viesse mesmo. Desse jeito o negócio deixava de ser um tudo ou nada. Se a empreitada ao Oriente desse em água (literalmente, com os navios afundando), cada um perderia uma quantia relativamente pequena. E bola para a frente. Se desse certo, todo mundo ganhava.

    Ilustração de um quebra cabeça sendo montado em cima de uma mesa, cenário medieval. No desenho do quebra-cabeça se forma um navio em alto mar referente às Grandes Navegações.
    (Sharisy Pezzi/VOCÊ S/A)

    Ideia exótica para uma Europa que mal tinha saído da Idade Média, mas natural para uma nação que construiu seu caráter com base no esforço coletivo. Se o trabalho em equipe tinha escavado os canais e levantado os moinhos que literalmente tiraram a Holanda do fundo do poço, agora o financiamento coletivo levaria os navios do país ao Índico.

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    A iniciativa partiu do governo holandês. Em 1602, a República uniu as seis Companhias das Índias do país, formou uma grande estatal e convidou a população a se tornar sócia. Vinha ao mundo a primeira megacorporação da história: a Vereennigde Nederlandsche Oostindische Compagnie (Companhia Unida Holandesa das Índias Orientais) – para não complicar, vamos fazer como os holandeses do século 17 e chamá-la pela sigla simplificada que eles criaram: VOC.

    “Convidar a população para virar sócia” significava dividir a empresa em partes. Milhares de partes. E então vender os pedaços no mercado. Em que mercado? Construíram um em Amsterdã para comercializar as “partes” da VOC e deram o nome de bourse (bolsa).

    “Bolsa” já era o nome que os holandeses usavam para designar os lugares onde os comerciantes se reuniam para negociar. Por que chamavam isso de bolsa? Ninguém sabe. A versão mais persistente é a de que mercadores do século 14 se reuniam em Bruges (Bélgica), um centro comercial importante da época, e se hospedavam num certo Hôtel des Bourses (Hotel das Bolsas). E o nome foi se espalhando. Também existe uma hipótese mais simples. Pessoas carregavam moedas em bolsas, poxa. Era lógico que um lugar onde circula muito dinheiro, como uma reunião de comerciantes, ganhasse esse nome.

    E a VOC foi para a bolsa. Exatamente 1.143 pessoas compraram partes da empresa. Em tamanhos variados. Oitenta indivíduos colocaram mais de R$ 350 mil em dinheiro de hoje (10 mil guildas no da época). Mas boa parte era formada por pequenos investidores: 445 puseram mil guildas (R$ 35 mil) ou menos. Trabalho financeiro coletivo é isso aí.

    Cada pedaço da VOC era chamado de “parte de uma ação”. “Ação” no sentido de empreitada, já que o dinheiro era para financiar empreitadas mesmo – para a Índia, atrás de pimenta, cravo e canela. E a palavra ficou – nas línguas latinas, pelo menos; os países anglófonos preferiram chamar a coisa só de “partes” mesmo (shares).

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    Somando todos os papéis que tinham ido à venda, a VOC arrecadou 6,5 milhões de guildas, algo próximo de R$ 230 milhões. Esse passou a ser o “valor de mercado” da empresa, a soma do preço de todas as suas ações.

    Parece pouco. Mas estamos falando de um mundo bem menor que o de hoje. O PIB do planeta inteiro na época, estima-se, estava na faixa de US$ 800 bilhões em dinheiro atual – contra US$ 101 trilhões neste momento. O fato é que, lá atrás, o capital de 6,5 milhões de guildas da VOC fazia dela, tranquilamente, a maior empresa do planeta.

    A essência do mercado financeiro 

    As ações da VOC faziam o que ações fazem: davam direito a uma parcela dos lucros da companhia. Se você tivesse colocado mil guildas ali, poderia embolsar 0,00015% do dinheiro que a empresa fizesse com suas viagens nos anos seguintes – esse seria o seu dividendo. Estava agendado um pagamento de dividendos em 1603, outro em 1605 e mais dois, em 1607 e 1608. Só não dava para saber quais seriam os lucros – ou se haveria algum lucro. Ou se algum navio voltaria mesmo das viagens.

    Pior: você colocou suas guildas no negócio quando estava solteiro e, agora, em 1603, está casado, com um par de gêmeos para criar, e nada de os barcos voltarem. O que você faz? Bom, você podia ir até a Bolsa de Amsterdã e vender suas ações – para outra pessoa a fim de encarar o risco.

    Os anos foram passando, e não veio dividendo algum. A VOC tinha gastado mais da metade do capital com a construção de 22 navios, e outras centenas de milhares de guildas para adquirir os metais preciosos que precisava para trocar por especiarias do outro lado do mundo. A competição com os portugueses e os espanhóis também não ajudava. E era competição no sentido mais amplo da palavra: a Holanda estava em guerra com a Espanha desde 1568 – e continuaria assim até 1648. Até por isso qualquer navio mercante carregava canhões. Todo encontro no mar entre Holanda e Espanha terminaria em um embate sanguinário.

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    Um caso típico: barcos holandeses capturaram galeões espanhóis em 1605, no Canal da Mancha. O almirante holandês, em vez de fazer prisioneiros, afogou todos os tripulantes, amarrados um a um.

    Por essas, a VOC estava fazendo mais dinheiro saqueando navios espanhóis do que com o comércio propriamente dito. Mas não conseguia montar fortes e entrepostos comerciais no Oriente – os inimigos da Península Ibérica, que já estavam bem estruturados na região, não deixavam. E sem essa infraestrutura não dava para garantir um comércio constante: uma hora os navios voltavam bem fornidos, outra hora não voltava navio algum.

    Isso gerou um clima de especulação na Bolsa de Amsterdã. Quando apareciam boatos de que navios da VOC tinham afundado, um monte de gente que tinha colocado suas suadas mil guildas nas ações queria mais era se desfazer delas a esperar por um lucro que, provavelmente, nunca viria. Aí o jeito era vender na bolsa, para quem não tivesse essa informação. E com muita gente vendendo, as ações da VOC faziam o que ações fazem nessas ocasiões: caíam de preço.

    Ilustração de um quebra cabeça sendo montado em cima de uma mesa, cenário medieval. No desenho do quebra-cabeça há moedas de ouro e papéis.
    (Sharisy Pezzi/VOCÊ S/A)

    Quando o boato era oposto, o de que os navios estavam voltando carregados de especiarias, a conversa era outra, claro. Mal informado era quem vendesse. E com muita gente comprando, o preço subia.

    Em 1607, um terço das ações da VOC tinha trocado de mãos na bolsa. Ou seja: bastou surgirem as ações para que aparecesse o mercado de ações, em que as pessoas compram e vendem papéis todos os dias. Algum sinal de que a empresa ia se dar bem, e os preços bombavam; qualquer desconfiança, e o valor dos papéis ia para o buraco. Uma montanha russa que cria oportunidades para comprar barato e vender caro – a essência do mercado financeiro.

    A Companhia Holandesa das Índias Orientais driblou os portugueses e os espanhóis passando batido pela Índia, e fincando seus postos comerciais mais a leste, na Indonésia, a partir de 1614. A primeira conquista da VOC na região foi o arquipélago de Banda, um paraíso com ilhotas cheias de especiarias despontando num mar azul-turquesa daqueles de derreter os olhos. Os moradores de Banda, por outro lado, não acharam a melhor ideia do mundo virar colônia de um bando de ruivos vindos de Marte. Reagiram à invasão.

    Mas o contra-ataque da VOC foi fulminante. Jan Pieterszoon Coen, capitão de navio e diretor da companhia, promoveu uma carnificina nas ilhas para mostrar quem mandava. Decapitou líderes da resistência e exibiu as cabeças em postes. Quando a VOC chegou para fazer negócios em Banda, o arquipélago tinha 15 mil habitantes. 15 anos, depois, eram 600. Mas não tinha outro jeito. Para ser um grande executivo no ramo do comércio internacional de especiarias, você precisava ser um grande executor. De pessoas.

    Ruim para os bandaneses, bom para os acionistas da VOC. Depois de garantir a Indonésia, os holandeses conquistaram algumas posições dos portugueses na Índia e foram ganhando terreno até que a VOC se tornasse a maior fornecedora de especiarias para a Europa. Entre 1602 e 1622, as ações tinham valorizado 300% – isso numa época sem inflação, já que o dinheiro eram moedas de ouro e de prata.

    Décadas mais tarde, em 1670, ela já tinha 50 mil funcionários e 200 navios – mais um exército particular de 30 mil soldados. Ao longo do século 17, a VOC enviou 1.770 navios para o Oriente, contra 371 de Portugal. Cem anos depois, o placar seria ainda mais elástico: Holanda 2.950 x 196 Portugal. A ideia do capital aberto, definitivamente, mostrava a que veio. E o resto é história.

    Este artigo foi adaptado a partir de um trecho do livro Crash – Uma Breve História da Economia (Harper Colins), do mesmo autor.

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