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Inflação: de onde ela vem, do que se alimenta, como se reproduz

Entenda como a história do dinheiro explica as altas nos preços, e veja como esse cenário interfere no mundo dos investimentos.

Por Alexandre Versignassi
Atualizado em 1 nov 2023, 10h50 - Publicado em 12 abr 2021, 14h02
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 (Marco Tomaselli/VOCÊ S/A)
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Economia não é uma coisa feita de números. É uma coisa feita de gente. Um animal de proporções colossais. Nós somos as células desse bicho. E o alimento dele é o dinheiro.

Cada país nutre sua economia produzindo dinheiro novo, imprimindo moeda – tarefa dos Bancos Centrais. Se não fabricarem essa ração, o animal da economia morre de fome. Mas não se trata de uma tarefa trivial. Se derem comida demais, o bicho desenvolve um quadro clínico que também pode levá-lo à morte.

Essa doença é a inflação. E ela já começa a se manifestar. Em março, fechou em 0,93%, a maior para o mês desde 2015. Isso colocou a alta dos preços acima daquilo que o Banco Central entende como aceitável, a chamada “meta de inflação”, que varia de ano para ano.

A meta para 2021 é de 3,75%, com tolerância de 1,5 ponto para mais ou para menos. Ou seja: atura-se até um teto de 5,25%. Passou  disso, a sirene dispara. Bom, com a esticada de março, a inflação acumulada nos últimos 12 meses ficou em 6,10%, acima do teto da meta. Parece pouco para um país que já viveu inflações de 1.000%, 2.000%. Não é.

Dado o cenário, aplicou-se a única vacina que existe contra a inflação: aumento nos juros. Elevaram a Selic de 2% para 2,75%, já anunciando que vêm mais altas por aí.

Não é só no Brasil. Nos EUA, os níveis de colesterol e triglicérides da economia também começam a apresentar sinais preocupantes. A inflação em 12 meses subiu de 0,2% em maio do ano passado para 1,7% agora.

De acordo com alguns analistas, o índice de preços nos EUA está a meio caminho de chegar a algo próximo de 4%. Parece pouco. Não é. Trata-se de algo capaz de trazer efeitos deletérios para toda a economia mundial.

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Mas espera um pouco. Quando dissemos que a economia não é feita de números, mas de gente, não era só figura de linguagem. Os números dos últimos parágrafos são meras abstrações. Sombras de uma realidade bem mais fascinante do que as métricas da economia fazem imaginar.

Mais: se, por um lado, a inflação é uma enfermidade, por outro, ela também pode ser necessária. E, de quebra, muda as regras do jogo para quem investe.

Para entender tudo isso, você precisa conhecer as entranhas do bicho da economia, compreender a biologia dessa fera. E a biografia dela também. Nossa primeira escala, então, é num lugar distante: a Roma Antiga.

A economia da Roma Antiga

O dólar do século 3 a.C. era o dracma, uma moeda fabricada nas cidades gregas, feita com 75% de prata, e que circulava pelos territórios da Europa e do Oriente Médio próximos do Mediterrâneo. Entre eles, uma cidade-estado da península itálica: Roma.     

Em 211 a.C., a República (ainda não era Império) decidiu criar um dracma para chamar de seu. Adotou uma moeda chamada “dinheiro”. Ou quase isso. Era o denário. Foi dela que saiu a palavra “dinheiro”. Não só a palavra. O conceito moderno também.

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Roma criou o denário como uma arma militar. A República estava no meio da Segunda Guerra Púnica, contra Cartago, um império que ocupava algumas bordas do Mediterrâneo, no norte da África e no sul da Península Ibérica.

O general cartaginês Hannibal Barca tinha juntado o maior exército da história até então. Partiu da Espanha rumo à Itália com 90 mil soldados (um estádio do Barcelona lotado), 12 mil cavalos (uma fila de 30 quilômetros, se você colocar um atrás do outro) e 40 elefantes (uma imagem que dispensa analogias).

São números de historiadores da época, que eram bem chegados a exageros, mas tudo bem, coisa pouca não era. Tanto não era que Roma precisou mobilizar uma força brutal para conter o avanço de Hannibal. Por “mobilizar”, entenda pagar soldados, fabricar armas, transportar comida para os campos de batalha.

Não existe almoço grátis, nem guerra grátis. Tudo isso custava caro. Daí a ideia de lançar o denário, uma moeda de prata, valiosa, e 100% nacional. O Estado poderia produzi-la para pagar suas contas.

Antes, Roma até cunhava moedas de bronze. Mas elas eram o troco da Antiguidade. Dinheiro para valer era a prata e, como sempre, o ouro – os metais preciosos, difíceis de obter. E que, justamente por não darem em árvore, têm valor intrínseco, seja na forma de barras, seja na forma portátil, de moedas.   

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Só que o denário trazia uma pegadinha. Tinha só 60% de prata. Assim, ficava bem mais fácil pagar o esforço de guerra. Pouco depois, passaram a fazer denários de bronze puro, só banhados com prata. Como bem definiu o economista José Júlio Senna, da FGV: “Era o Estado falsificando sua própria moeda”.   

Mas deu certo. A população simplesmente acreditava no valor dos discos de metal fabricados pelo Estado, mesmo que a quantidade de prata ali fosse ínfima.

A República Romana, vale lembrar, nem foi a primeira nação a fazer isso. A grega Atenas já tinha fabricado moedas “falsas” para bancar esforços de produção lá atrás, no século 6 a.C. Mas quem gostou mesmo do jogo foi Roma.

Após 17 anos de guerra financiada com dinheiro falso, Roma batia Cartago, e pavimentava o caminho para se tornar, ela sim, um império descomunal. Nos séculos seguintes, os governantes romanos não pararam mais de brincar de Banco Imobiliário, mesmo em tempos de paz. Produziam quanto dinheiro lhes desse na telha – o denário passaria a ter só 5% de prata.

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Em Roma, a produção em massa de moedas com metal barato financiou as guerras, mas também criou a primeira inflação da história. (Denis Freitas/VOCÊ S/A)
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Consolidava-se ali a verdadeira invenção do dinheiro: uma coisa que o Estado tem como produzir na quantidade que bem entender, pois não depende da escassez natural dos metais preciosos. E que, mesmo assim, motiva a produção de riquezas sólidas – espadas, comida, navios, casas.

O conceito funcionou tão bem que, hoje, você concorda com a ideia de trabalhar em troca de números que aparecem no saldo da sua conta bancária a cada 15 dias  – algo cujo valor intrínseco é zero.

Mas, no meio do caminho da história do dinheiro, havia uma pedra. Vamos a ela.

Como a inflação funciona

Você é uma soberana ou soberano de Roma e resolve construir um aqueduto gigante, da capital até Pompeia, lá longe, para deixar o seu nome gravado na história.


O dinheiro do Estado não dá conta da obra, mas tudo bem. Você sabe que é só fazer dinheiro novo para que o povo se mobilize. Aí você vai lá e manda cunhar 10 milhões de denários – usando pouco metal e do mais barato possível, claro, porque é o que dá para fazer.

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Esses denários vão para bancar os blocos de mármore do aqueduto e o salário dos pedreiros. Assim que os produtores do material e os operários recebem o dinheiro novo, iniciam a construção, mas também começam a gastar
o dinheiro.

E isso é bom. Se os operários vão comprar vinho, a demanda pela bebida aumenta, e o vinicultor tem uma motivação para produzir mais. Com ele plantando mais uvas e fabricando mais vinho, o PIB de Roma cresce. Ponto para você.

Mas e se houver mais dinheiro circulando no mercado do que a capacidade dos vinicultores de produzir mais vinho? Eles vão leiloar as garrafas. Não num leilão propriamente dito, mas aumentando o preço.

Agora que o vinho ficou mais caro, e o vinicultor está ganhando o dobro, o que acontece? Vamos dizer que ele resolve aproveitar o momento bom nos negócios e vai construir uma casa nova, linda, toda de mármore, e sai para comprar o material de construção.

Só tem uma coisa. Não foi só o vinicultor que ganhou mais dinheiro. Foram todos os envolvidos na construção do aqueduto e todos os que venderam algo a essas pessoas. O que não falta é gente com os bolsos mais cheios. Esse povo também pode ter a ideia de ampliar suas casas. Natural.

As pedreiras de Roma, então, vão receber mais pedidos do que podem dar conta. Só que mármore não dá em árvore. Não tem como aumentar drasticamente a produção da noite para o dia.

Com vários clientes novos e sem ter mármore para todo mundo, o vendedor de material de construção vai botar o preço lá em cima, porque não é besta. E o vinicultor, quando for comprar o material para construir a casa nova dele, vai ouvir: “Quer mármore? Tá o dobro”.

Mas espera um pouco. Você não tinha cunhado mais dinheiro para fazer um aqueduto gigante? E agora? Ainda não fizeram nem 500 metros de obra, e o material de construção aumentou 100%? Lembre-se de que o mármore subiu justamente por causa das moedas novas.

Mas nem todo estadista costuma juntar A com B nessas horas. “Que se dane. Manda cunhar mais 100 milhões de denários e paga esses ladrões”, diria o governo. E tome mais dinheiro circulando. Nisso, os fabricantes de material e seus funcionários saem para comprar vinho. A remarcação de preços começa de novo… Inflação.

Para o vinicultor, a vida fica basicamente na mesma. Ele paga o dobro, o triplo, pelo mármore, mas ok, já que está cobrando mais pelo vinho também. Quem se arrebenta mesmo é o pessoal do andar de baixo.   

É o caso dos trabalhadores da construção do aqueduto. O salário deles continua na mesma, mas agora eles têm de trabalhar mais horas para comprar a mesma quantidade de vinho. Inflação cria desigualdade. No Brasil de hoje, a carne de boi ficou 29% mais cara nos últimos 12 meses. E de quanto foi o aumento no seu salário? Pois é.

Quando a inflação passa a destruir o poder de compra, a fabricação de dinheiro novo deixa de fazer sentido. Em vez de criar PIB, ela gera pobreza. Foi o que aconteceu em Roma.

Não existiam índices de inflação na época, mas registros históricos mostram que o preço da saca de trigo, por exemplo, subiu 200 vezes entre os séculos 2 e 3. Uma inflação de 20.000%. Mais do que o suficiente para relegar boa parte dos cidadãos à miséria, já que os ganhos deles não sobem nesse ritmo.

No início do século 4, o imperador Diocleciano tentou frear a onda de uma forma que os brasileiros não tão jovens conhecem bem: com um congelamento de preços. Ele instituiu uma “tabela de preços máximos” para boa parte dos itens de consumo: vinho, frango, sapatos, cortes de cabelo… Olha ela aqui embaixo:

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(Juliana Krauss/VOCÊ S/A)

Claro que não deu certo. Quem determina os preços é a quantidade de dinheiro em circulação, não a lei. Ponto.

Se o vinicultor tiver gastado 30 denários para produzir uma garrafa de vinho, ele não vai vender por 24, como mandava a tabela aqui em cima. Vai vender por mais de 30 e pronto.

Não existe outra realidade possível. Congelamentos só servem para colocar praticamente todo o comércio na ilegalidade. Foi assim no Brasil de 1986. Foi assim na Roma de 301 d.C.   

Quem resolveu de fato o problema da inflação romana foi o imperador seguinte, Constantino. Ele criou uma espécie de Plano Real. Instituiu uma nova moeda, o sólido, feita de ouro puro. E determinou que ela seria a moeda usada nos gastos públicos.

Isso minava a possibilidade de o Estado produzir quanto dinheiro quisesse. A inflação romana acabaria ali.   

E o fato é que, nos séculos seguintes, houve poucas experiências com dinheiro sem valor intrínseco. Ouro e prata com bons graus de pureza voltariam a reinar soberanos como matéria-prima das moedas.

Tanto que uma “libra esterlina”, por exemplo, significa “meio quilo de prata pura”. “Dólar” vem de “Thaler”, uma moeda de prata da Alemanha medieval. “Real” era a moeda fabricada por Portugal com ouro da capitania de
Minas Gerais.

Quando as notas bancárias começaram a entrar em circulação, no século 17, elas tinham lastro em ouro. Nos EUA do final do século 19, você tinha o direito de ir ao banco e trocar cada nota de dólar que tivesse na carteira por 1,5 grama do metal amarelo na boca do caixa.

Era o chamado “padrão-ouro”. Você só poderia imprimir um dólar (ou uma libra, ou um marco alemão) se houvesse uma certa quantidade de ouro guardada no cofre para garantir o valor dela.   

O século 20, porém, acabaria com essa experiência. A Alemanha, por exemplo, abandonou o padrão-ouro para bancar os esforços da Primeira Guerra, e depois para pagar a multa imposta pelos Aliados a título de reparação pelo conflito.

A dívida germânica equivalia a meio trilhão de dólares de hoje. E deveria ser paga em dólares mesmo, a moeda que valia ouro. Para levantar o dinheiro, o governo alemão passou a imprimir toneladas da moeda local (o marco) e comprar dólares junto aos bancos do país a qualquer preço. Bom, a oferta de dólares era algo limitado.

A de marcos, infinita. Era só imprimir sem lastro, já que não havia mais padrão-ouro na Alemanha. Com isso, aconteceu o óbvio: o preço do dólar explodiu.

Em janeiro de 1922, o mercado financeiro da Alemanha cobrava 186 marcos para um dólar. Em dezembro, 8.400. Em junho de 1923, 193 mil. E era só o começo. A cotação do dólar chegou a 11 milhões de marcos em agosto. Em dezembro, 5 trilhões:

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Os salários também. Mas é aquela história: a alta nos preços sempre superava a alta nos ganhos, e o poder de compra da população ia evaporando dia após dia. Era a inflação produzindo pobreza.

No fim de 1923, um pãozinho saía por 21 bilhões de marcos; uma passagem de bonde, 150 bilhões; um jornal, 200 bilhões. Para acompanhar a alta, as impressoras do Reichsbank, o Banco Central alemão, chegaram a produzir notas de 100 trilhões.

As cédulas antigas, de meros milhões de marcos, não serviam nem para troco. As crianças usavam para fazer pipa.

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Na Alemanha de 1923, chegaram a produzir notas de trilhões de marcos. As antigas, de milhões, não serviam nem para troco. Viraram papel de pipa (Denis Freitas/VOCÊ S/A)

Foi a hiperinflação mais célebre da história: 2 trilhões por cento em dois anos. Seria como se a cesta básica, hoje em R$ 631, passasse a custar R$ 13 trilhões em 2023 (o dobro do total de reais que existe no Brasil hoje).

O inusitado é que bastou uma medida para acabar com essa palhaçada. Instituíram uma moeda nova em 1924, o rentenmark, valendo 1 trilhão de marcos a unidade. As notas e as moedas voltaram a ser impressas em valores terráqueos – 1, 5, 10, 50 – e, talvez o mais essencial para o sucesso da reforma, traziam a frase “valor constante”.

Ela remetia a um novo compromisso do Estado. O de que não, nenhum governo jamais deixaria o dinheiro virar lixo de novo. Não sairia imprimindo notas feito louco para pagar suas contas. Funcionou.

Porque é isso que garante o valor do dinheiro: a certeza de que o suprimento de moeda vai se manter relativamente constante, como se houvesse de fato um lastro em ouro. Com isso, o próprio padrão-ouro se mostrou desnecessário.

Para que guardar ouro nos cofres para manter a disciplina com a impressão de dinheiro se, para isso, basta só a disciplina? Em 1971, os EUA se tornariam o último país a abandonar o padrão-ouro. E o mundo voltava a ser uma Roma Antiga, só que agora com a cabeça no lugar.   

O mundo todo? Não. Vários países perderam a mão e deram uma de Roma, com o Estado produzindo dinheiro infinito para pagar por qualquer coisa: hidrelétrica, estádio, champanhe para as festas, dólares para as contas de governantes corruptos na Suíça.

O Brasil, você sabe, foi um deles. Entre 1964 e 1994, tivemos uma inflação acumulada de 1.587.927.776.993.779%. 1,5 mil trilhão por cento.

Qualquer brasileiro com mais de 40 anos sabe o que é ver o pãozinho custar um preço de manhã e, no fim da tarde, já estar mais caro. Em 1986, o então presidente José Sarney repetiu a receita de Diocleciano, instituindo um congelamento de preços. Deu em água.

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Em 1986, com a inflação em 235% anuais, José Sarney impôs um congelamento de preços. Estabelecimentos que não cumprissem eram lacrados. (Denis Freitas/VOCÊ S/A)

A hiperinflação só se tornaria uma página virada por aqui com a chegada do nosso rentenmark, o real, em 1994. O recorde inflacionário tinha rolado um ano antes: 2.708%. Felizmente, inflações ridículas são eventos raros hoje.

O Zimbabwe passou por uma entre 2008 e 2009, e chegou a produzir uma nota de 100 trilhões de dólares zimbabuanos antes do colapso final da moeda. A Venezuela passa hoje por uma de 4.000% ao ano, e deve ver logo o colapso da sua.

Nas economias funcionais de hoje, porém, é virtualmente impossível que aconteça algo assim. Quem garante a segurança econômica é o sistema de metas de inflação (adotado no Brasil a partir de 1999) e as taxas de juros do Banco Central.

Vamos examiná-las mais de perto. E começar com uma pergunta: se inflação é algo ruim, por que é que existem “metas de inflação”? Resposta: porque inflação é algo bom, pelo menos em doses miúdas. É o que vamos ver agora.

Como a Selic funciona

Se o preço da pizza no seu bairro sobe, isso pode ser um indício não exatamente de excesso de dinheiro circulando, mas de falta de pizza no mercado. De pouca oferta para muita demanda. Sinal de que há mercado para você abrir uma pizzaria. E, se você fizer isso, o PIB do seu bairro cresce: haverá mais produção (de pizza) e novas vagas de emprego. Bom para todo mundo.

Os governos sabem disso. E imprimem dinheiro para forçar esse tipo de situação. Enquanto o Brasil viveu aquela inflação de 1,5 quatrilhão por cento, entre 1964 e 1994, a dos EUA foi de 378% – um número absurdamente menor, mas ainda assim vistoso.

A diferença é que o PIB dos Estados Unidos praticamente triplicou nesse período. De fato, pagava-se bem mais por uma Coca-Cola nos EUA em 1994 do que em 1964, mas o efeito da criação de moeda no crescimento do PIB compensou.

No Brasil, idem. Nos 19 anos entre 1994 e o nosso último ano de crescimento forte, 2013 (3%), a inflação foi de 316%. O PIB, porém, subiu quase 100% 1. O poder de compra do real diminuiu um pouco, de fato, mas a pobreza da população diminuiu. Mais gente passou a poder comprar mais coisas. Bom para todo mundo.

Os governos, então, não agem exatamente como se existisse um lastro em ouro. Eles se aproveitam do poder que o dinheiro novo tem para criar comida, navios, casas.

Esse dinheiro novo não cai exatamente na sua conta (a não ser em casos extraordinários, como o dos auxílios emergenciais). No dia a dia, ele vai para a conta dos bancos.

Quando o governo baixa a Selic, ele está fabricando dinheiro novo. Funciona assim: os bancos sempre emprestam dinheiro uns para os outros. O Itaú pode ter fechado o dia com dinheiro sobrando no caixa, e o Bradesco, com dinheiro faltando. Acontece o tempo todo.

O banco que ficou no vermelho prefere pegar emprestado com outro banco do que mexer em suas “reservas de emergência” – essas ficam guardadinhas, rendendo na forma de títulos públicos.

Ele acha melhor pegar com outro banco porque os juros nessa ciranda interbancária são baratos. Na verdade, os mais baixos possíveis dentro do sistema financeiro, já que os títulos públicos dos bancos ficam de garantia. Por isso eles são os “juros básicos da economia”.

No fim das contas, o juro básico é o preço que os bancos pagam pelo dinheiro que vão emprestar para você lá na frente. Quanto menores forem esses juros, mais barato o dinheiro fica no mercado.

Quanto os bancos cobram de juros dos outros bancos? O quanto eles quiserem. Mas o Estado tem uma estratégia para influir nesse jogo. Ele entra na ciranda de empréstimos, na pele do Banco Central. Se o Itaú cobrar o equivalente a 3% anuais do Bradesco, e o BC achar muito, ele chama o Bradesco de canto e oferece o mesmo empréstimo a 2%.

De onde o BC tira o dinheiro? Do nada. Ele imprime e pronto. Dessa forma, o banco que recebeu o empréstimo tem como reemprestar essa grana para pessoas e empresas a juros menores. E a quantidade de dinheiro em circulação aumenta.

Em que momento o BC “acha” que um banco está cobrando muito ou pouco? Bom, o que ele faz é colocar uma meta para a Selic.

Se essa meta for de 2%, ele passa a emprestar cobrando isso, ou até menos, até que a média diária dos juros que os bancos cobram uns dos outros fique em 2%. A essa média, dá-se o nome de Selic (sigla para Sistema Especial de Liquidação e de Custódia – a entidade que apura justamente a tal média nos juros entre bancos).

No início da pandemia, a meta para a Selic caiu mais da metade, de 4,25% para 2%, já que a intenção do governo era reavivar a economia. E a quantidade de moeda no Brasil subiu de R$ 5,7 trilhões para R$ 6,8 trilhões em um ano. Entre 2014 e 2019, o ritmo de crescimento do estoque monetário estava em módicos R$ 520 bilhões anuais. Em 2020, dobrou para R$ 1,1 trilhão.         

Agora em março, você sabe, a meta da Selic subiu para 2,75%. E aí entra a parte da outra meta, a de inflação.

Para que não haja exageros na fabricação de dinheiro, o Banco Central e o Ministério da Economia fixam na cabeça uma taxa de inflação tolerável. Se ela romper essa taxa, liga-se a sirene.

Para 2021, fixaram a meta de inflação em 3,75%, com aquela tolerância de 1,5 ponto para mais ou para menos. Como você vimos lá no início do texto, a inflação nos últimos 12 meses fechou março em 6,10%, e segue acelerando. Pois é.

A meta já foi para as cucuias. Hora de fechar a torneira de dinheiro – e de abrir o ralo da economia, para drenar o excesso de moeda. Como o Banco Central faz isso? Subindo os juros.      

O BC vai para a ciranda dos empréstimos entre bancos e vira a casaca. Em vez de fazer o papel de emprestador de dinheiro, faz o de quem pede dinheiro emprestado.

Se o Santander oferece um empréstimo de R$ 100 milhões a 2% para o Safra, o BC vai lá, chama o Santander e diz “ei, se você emprestar isso para mim, te pago 2,75%”. Nisso, o Santander pega e empresta ao BC, para ganhar mais juros. E os R$ 100 milhões ficam retidos pelo Banco Central. Saem de circulação. 

Agora, se o Safra quiser ver dinheiro, vai ter de oferecer 2,75%, ou mais, no pregão de empréstimos entre bancos. Resultado: a média das taxas sobe para algo próximo de 2,75%, a nova meta que o BC colocou para a Selic. E o dinheiro fica mais caro – o que também faz diminuir o montante que gira
pela economia.

Essa tendência de aumento de juros é global. Em fevereiro de 2020, havia US$ 15,4 trilhões em circulação nos EUA. Um ano depois, eram US$ 19,7 trilhões – cortesia não só dos juros baixos, mas de emissão de moeda para pagar auxílio emergencial e dívidas de empresas que entraram a perigo com a pandemia.

Ou seja: mais hora menos hora, o Fed (Banco Central dos EUA) vai ter de aumentar os juros também – por lá, eles estão em zero, com o Estado emprestando de graça para os bancos.

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Os dólares a mais aumentaram a inflação do dólar, e a afetaram a nossa também. A carne bovina, por exemplo, subiu 5,5% nos EUA em 2020. A questão é que os frigoríficos brasileiros também vendem carne para os EUA.

Com o produto mais caro lá, eles exportam mais, e passam a vender menos para o mercado interno. Passa a faltar no Brasil, e o preço sobe.

Some isso aos R$ 293 bilhões que o governo colocou na praça para o auxílio emergencial, e temos a razão para aquela alta de 29% na carne. Na carne e em diversos alimentos exportáveis. O açúcar subiu 38%. O milho, 56%. A soja, 74%.

Culpa do câmbio também. Antes da pandemia, o dólar estava em R$ 4. Depois, bateu em quase R$ 6. O medo de uma crise global fez investidores mundo afora aumentar suas poupanças em dólar, e diminuir suas carteiras de moedas de países emergentes.

Isso baixou a demanda por reais no mercado financeiro, e nossa moeda caiu de preço perante o dólar. Resultado: todos os produtos importados subiram – o que aumenta até o preço do pão, já que 40% do nosso trigo vem de fora.   

Como os juros altos afetam os investimentos

Não existe outra saída. Sem aumentos nos juros no momento certo, qualquer país periga virar uma Alemanha da década de 1920 ou um Brasil da de 1980. Mas aumentar o preço do dinheiro é um remédio cheio de efeitos colaterais.

O mais óbvio deles: juro alto deixa o dinheiro mais caro no mercado. Isso ajuda a valorizar o real em relação ao dólar, pelo menos enquanto os juros de lá não aumentam também.

Só tem um problema. Dinheiro caro significa menos capital disponível para as empresas, que normalmente dependem de empréstimos bancários para investir em seus negócios. Com menos capital, as empresas travam. E os motores da economia começam a pifar.

Juro alto também significa bolsa em baixa. É que a Selic baliza a remuneração dos títulos públicos. Quanto mais dinheiro flui para os títulos, menos sobra para o mercado de ações. E a bolsa tende a cair – note bem, não é um fato escrito na pedra, é só uma tendência.

Mas se quem aumenta os juros é o Fed, a coisa ganha outra dimensão. Qualquer aumento nas taxas dos títulos públicos de lá, que pagam juros sobre dólares, é uma facada nas bolsas de valores do mundo todo.

Os grandes fundos passam a mover quantidades assombrosas de dinheiro para o “Tesouro Direto” dos EUA. E as bolsas sofrem, principalmente nos países emergentes, que é de onde os investidores peso-pesado tendem a sacar primeiro.

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Os EUA usam suas impressoras de dólares como remédio contra a crise. Será que já exageraram na dose? (Denis Freitas/VOCÊ S/A)

Não é só a Selic do presente que baliza os juros dos títulos públicos, aliás. Entre os títulos brasileiros, há os que pagam a taxa de juros do BC por anos a fio, seja qual for o valor dela no futuro (para quem não lembra, o nome deles é Tesouro Selic).

Mas há também os prefixados, que pagam um juro que você já sabe de antemão qual é. Quem determina esse juro previamente fixado são as expectativas do mercado para o futuro da Selic.

Exemplo prático: para 2029, a estimativa é a de que ela esteja em 9%. Por isso, alguns títulos prefixados estão pagando 9% desde já, enquanto o Tesouro Selic remunera só os 2,75% em voga neste momento.

Esse juro extra do prefixado é um prêmio pelo risco. Se der uma louca na inflação e a Selic for a 15% lá na frente, os títulos Tesouro Selic estarão rendendo 15%, muito mais do que os 9% do juro prefixado, e o governo, que é quem paga esses juros, se dá bem.

Já se a inflação aquietar, e a Selic voltar para tipo 2% no fim da década (vai saber…), quem estiver com dinheiro no prefixado leva vantagem. Vai continuar embolsando 9% anuais até o vencimento do título, daqui a dez anos. Belíssimo negócio.

O outro lado dessa moeda é o seguinte: títulos que pagam a Selic sempre vão proteger contra uma desvalorização brutal da moeda. Quanto maior for a inflação, maiores serão os juros.

É uma lei da natureza econômica. Logo, a segurança do Tesouro Selic é maior. Outro título mais conservador é o IPCA+, que paga a inflação do futuro, seja ela qual for, mais um chorinho prefixado (hoje em torno de 4%).

Para onde ir, então? IPCA+? Tesouro Selic? Prefixado? Ou manter a fé na bolsa? Não existe resposta pronta. Tudo depende de um detalhe: se os governantes, daqui e lá de fora, terão competência para evitar uma inflação descontrolada sem destruir as empresas com juros altos demais por tempo demais.

O melhor cenário possível é a produção subir forte no Brasil e no mundo com o eventual fim da pandemia. Uma oferta exuberante de bens e serviços pode simplesmente absorver o dinheiro novo que entrou em circulação até agora. É que um ambiente de alta produção e alta concorrência mantém os preços em baixa. E corta a inflação pela raiz.

Quem dá valor a uma moeda, no fim das contas, é a capacidade empreendedora da população que usa essa moeda. É o poder que ela tem de inventar novos negócios, de criar produção e empregos onde antes não havia nada. Porque a economia não é feita só de taxas de juros e índices de inflação. A economia é você.

E o futuro dela também está nas suas mãos.


Esta matéria contém trechos do livros Crash – Uma Breve História da Economia, escrito pelo autor da reportagem


 

 

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