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Por que perdoar dívidas é tão difícil, mas pode ser bom para a economia

68 milhões de brasileiros têm boletos em atraso. Entenda por que ter dívidas captura o cérebro e veja como a mistura do dinheiro com valores morais atrapalha o debate sobre anistia – tão antigo quanto o próprio crédito.

Por Tássia Kastner | Ilustração: Ina Gouveia | Design: Caroline Aranha
Atualizado em 17 jul 2023, 10h03 - Publicado em 14 out 2022, 06h14
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 (Ina Gouveia/VOCÊ S/A)
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Dívida. Substantivo feminino. “Obrigação de dar, fazer ou pagar algo (geralmente alguma quantia em dinheiro) a outrem. Toda obrigação moral de dar ou fazer uma determinada coisa, em virtude de um favor ou bem recebido.”

Dívida não é só um boleto com uma data de vencimento. É muito mais do que uma questão econômica. Nossa relação com ela está embrenhada na cultura, na religião e em discussões morais. A língua e o dicionário apenas trataram de converter em significado formal aquilo que, à primeira vista, diz respeito apenas a números.

E se você acha o português cruel com quem tem contas a pagar, experimente em alemão. No idioma do Goethe, usa-se a palavra Schuld para dívida e para culpa também.

No Brasil, estamos falando de 68 milhões de devedores, segundo o Serasa. Nunca tanta gente teve o “nome sujo”. Significa que 41,8% dos adultos do país têm dívidas em atraso. Pense no happy hour com os seus amigos: se houver 10 pessoas na mesa, é provável que quatro delas esteja com alguma conta atrasada.

Não é uma pandemia (e nem por causa dela). O fenômeno está mais para uma endemia. Os números crescem a uma taxa relativamente baixa, mas de forma consistente. Quando o Serasa começou a divulgar a estatística, em 2016, o país já tinha 59 milhões no cadastro de devedores. A faixa de 60 milhões foi cruzada pela primeira vez em maio de 2017. De lá para cá, o único ano com redução foi 2020, o primeiro ano da pandemia. Mas ali ocorreram três alinhamentos de astros. 1) O auxílio emergencial de R$ 600, 2) os bancos abriram programas robustos de renegociação de dívidas e, 3) os birôs de crédito passaram a dar um prazo de 45 dias, em vez dos tradicionais 10, para incluir o nome do devedor na ficha suja.

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Em 2021, o auxílio diminuiu a R$ 200, os bancos voltaram ao padrão de renegociações e os birôs estavam a postos para negativar quem estivesse inadimplente. Para piorar, a inflação foi escalando e os juros também. O IPCA saiu de 4,52% ao ano em dezembro de 2020 para o pico de 12,13% em abril deste ano. A inflação como um todo já cedeu para a faixa de um dígito, mas o grupo de alimentação continua com inflação acumulada de mais de 13%. No mesmo período, a renda do trabalho caiu para o menor patamar desde 2012 – e só começou a se recuperar agora.

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Já os juros, que foram à mínima de 2% ao ano em 2020, bateram os 13,75%. Quem pega empréstimo paga, em média, 53,9% em taxas de juros, segundo dados do Banco Central. Quem precisa de R$ 1.000 termina desembolsando R$ 539 ao final de um ano em juros para o banco. Em dezembro de 2020, eram 36%.

Trata-se de uma combinação explosiva. Não adiantava mais dizer que, para evitar o endividamento, as pessoas simplesmente deveriam gastar menos. Não havia mais onde cortar.

Foi nesse cenário que os brasileiros começam a usar mais o cartão de crédito. Em agosto, os gastos no cartão alcançaram R$ 153 bilhões, um salto de 42% em relação a dezembro de 2020. Já o uso do rotativo, quando a pessoa não paga a fatura, mais que dobrou, alcançando R$ 28,8 bilhões. Em um ano, essa dívida não paga se converte em R$ 144 bilhões. O cartão de crédito é a linha mais cara, com juros de 398% ao ano. E a inadimplência no cartão também bateu recorde: 43,4% do crédito rotativo (que deveria durar apenas um mês) está em atraso.

Luiz Rabi, economista da Serasa Experian, reconhece que o baixo crescimento econômico do país ao longo de uma década, combinado com os picos de inflação, é o maior responsável pelo número de inadimplentes. “A quase ausência de crescimento econômico por muitos anos não estabiliza o crescimento de emprego e renda”, afirma.

Sem renda estável, não tem como manter as contas em dia, óbvio. Tanto que uma boa parte das novas dívidas é com serviços básicos, como concessionárias de água e energia. Uma característica dessas contas é que, depois que o consumidor vai parar no cadastro de devedores, elas são pagas em um período relativamente curto, menos de 60 dias. Claro: as companhias podem cortar os serviços de quem atrasa, e como não dá para viver sem luz e água, o consumidor acaba dando um jeito de pagar a conta. Só que isso não resolve o problema de maneira definitiva.

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De cada 100 pessoas que conseguem renegociar dívidas e limpar o nome, 40 voltam ao cadastro de devedores em 12 meses. Significa que, na média, a cada dois anos e meio está todo mundo de volta ao Serasa. “A sensação é de enxugar gelo”, diz Rabi.

O montante de dívidas só aumenta. São 235 milhões de boletos não pagos, dá mais de uma conta em atraso para cada brasileiro vivo. A lista ganhou 23 milhões de novas dívidas em 2022. Somadas, essas contas alcançam R$ 287,7 bilhões, mais que os R$ 252 bilhões do valor de mercado do Itaú.

Comparado com números superlativos, é quase ridículo propor educação financeira para resolver o problema – ainda que ela possa ajudar, claro. O próprio Serasa conduziu por anos um indicador que tentava medir a educação financeira dos brasileiros. Quando eles avaliavam o conhecimento sobre os princípios básicos das finanças, a nota média era 7. Ou seja: a pessoa sabe que vai se enroscar se pegar dinheiro emprestado. O problema é colocar em prática. Os entrevistados reconheciam que continuavam a fazer compras por impulso, por exemplo. “O consumidor é irracional. A gente parou de fazer esse indicador porque custava caro e dava sempre o mesmo resultado”, diz.

Mas de onde vem tal irracionalidade, especialmente entre os endividados crônicos? A psicologia econômica tem uma explicação – e ela é mais complexa do que parece.

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Túnel

Você não é você quando está com fome. O slogan do chocolate resume bem o sentimento. Você fica de mau humor, fala menos. Toda a sua atenção se volta a encontrar algo para comer. Um estudo realizado nos Estados Unidos mostrou que esse instinto traz consequências pouco óbvias quando acionado constantemente.

Logo depois da Segunda Guerra, pesquisadores da Universidade de Minnesota fizeram um estudo para tentar descobrir qual deveria ser o jeito de alimentar pessoas que estavam em inanição. A motivação veio do pós-guerra. Os soldados aliados não sabiam como tratar as pessoas que encontravam após o fim dos combates na Europa. O problema não era falta de mantimentos, mas a forma de reintroduzir a comida a elas. Essas pessoas deveriam receber grandes quantidades de nutrientes ou o processo deveria ser aos poucos?

Os pesquisadores submeteram, então, um grupo de 36 voluntários saudáveis (nos EUA mesmo, não na Europa devastada) a uma dieta que garantisse apenas o mínimo de nutrientes necessários para manter o corpo funcionando.

Depois de um mês, o resultado era visível – e esperado. Os voluntários haviam perdido músculos e se sentiam fracos para tarefas tão banais quanto lavar o cabelo durante o banho. Só que o cérebro também sofreu uma mudança brutal. Os voluntários submetidos à dieta restrita desenvolveram obsessão por livros de culinária, cardápios de restaurantes e anúncios de preços de comida que os supermercados colocavam em jornais. Planejavam se tornar agricultores. No cinema, as cenas com comida despertavam mais atenção do que todo o resto. Entrevistado, um dos participantes relatou seu desejo que aquele experimento acabasse. Não só por causa do sofrimento ligado à fome, mas porque a comida se tornou a coisa mais importante da vida – a única coisa que importava.

Esse estudo é citado no livro Escassez, de Eldar Shafir e Sendhil Mullainathan. Os autores queriam entender de que forma as dívidas impactavam o comportamento – relacionando o endividamento ao estresse crônico (algo comprovado por dezenas de estudos, um dos mais recentes publicados neste ano).

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Foi aí que eles encontraram nesse estudo sobre inanição no pós-guerra um insight: as mudanças mentais causadas pela fome, ou seja, pela escassez de comida seriam mesmas enfrentadas quando alguém é muito pobre ou está endividado e sofre escassez de dinheiro. De forma inconsciente, nosso cérebro passa a tentar resolver aquele problema trabalhando sem parar. E o dinheiro se torna a única coisa que importa.

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Vera Rita de Mello Ferreira, doutora em psicologia social e presidente da associação internacional de pesquisa em psicologia econômica, explica que esse comportamento da mente é chamado de “túnel de escassez”. A pessoa fica com o campo de visão todo direcionado a um foco só. E isso limita a análise mais ampla do problema e a capacidade de raciocínio para resolvê-lo de verdade.

Acontece porque essa pessoa fica expert em fazer escolhas. “Imagine que ela tem R$ 20 na mão. ‘Com esses R$ 20, se eu guardar para juntar e pagar o gás, não vou ter dinheiro para comprar o jantar de hoje. Mas se eu ficar sem gás, também não vou ter como cozinhar.’”, diz Vera Rita. Esse comportamento de resolução permanente de problemas deixa a pessoa exaurida, até que, em algum momento, ela toma uma decisão errada e agrava o problema. “O autocontrole é finito, e estar esgotado pode fazer a pessoa cometer uma bobagem com aquele pouquinho de dinheiro que ela tem.”

Troque “bobagem” por “gasto supérfluo”, quando o esperado seria que ela quitasse uma conta. Para a psicologia econômica, isso não é exatamente irracionalidade; é um bug no cérebro causado pelo túnel da escassez.

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O problema da renegociação

O túnel de escassez também é o que faz o devedor contratar um crédito para pagar outro, o que vai criando a bola de neve do hiperendividamento.

Em 2021, o Congresso aprovou a lei do superendividamento, mecanismo para ajudar na repactuação das dívidas em bloco, equivalente a um processo de recuperação judicial de empresas. Para ser um superenvididado, o consumidor precisa declarar que é incapaz de pagar suas dívidas sem comprometer suas condições mínimas de sobrevivência.

A Justiça se encarrega de juntar todos os credores, para que o devedor faça sua proposta com base no valor devido e na renda disponível. O mérito da medida é acabar com o assédio das cobranças, algo que agrava a ansiedade. Todas as dívidas são agrupadas em um único boleto, e todos os credores precisam aceitar – o juiz pode punir quem não quiser negociar.

Na hora do acordo, os bancos podem levar todo o salário menos um valor mínimo da renda, que precisa ser preservada. Quanto? Um decreto de Jair Bolsonaro fixou o valor em R$ 303, o equivalente a 25% do salário mínimo atual, de R$ 1.202.

Tem um grande porém, claro. O sistema de proteção social do Brasil, composto por salário mínimo, aposentadoria e outros auxílios, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC), estabelece que R$ 303 não são o bastante para a subsistência. O BPC, por exemplo, paga um salário mínimo a idosos acima de 65 sem aposentadoria e que tenham renda de até R$ 303, justamente porque o valor é insuficiente para cobrir as necessidades básicas. Ou seja, a pessoa permanece aprisionada pela escassez.

Escravos

O debate sobre o excesso de endividamento levou os Estados Unidos a aprovar o perdão de US$ 10 mil para quem tem financiamento estudantil – chegando a US$ 20 mil em alguns casos. Em média, os americanos terminam a graduação com dívidas de US$ 25 mil. São 43 milhões que devem ser beneficiados.

Impressionante é o seguinte: ¼ dos devedores são pessoas de mais de 30 anos, que deixaram a faculdade há pelo menos meia década e ainda não conseguiram quitar a dívida. 40% dos perdoados nem sequer terminou a graduação.

O projeto foi alvo de ataques. Entre a lista de críticas, uma delas dizia que o perdão das dívidas aumentaria a inflação – pois a grana economizada iria imediatamente para o consumo, pressionando os preços para cima. Segundo Paul Krugman, Nobel de Economia, o risco era desprezível, já que boa parte dessas pessoas não conseguiria pagar a conta de nenhuma maneira. Um segundo ataque veio do campo moral: as pessoas deveriam se responsabilizar sobre as suas dívidas.

A régua não é alta apenas para pessoas. Quando houve a quebra do Lehman Brothers, em 2008, os americanos foram contrários ao resgate das instituições financeiras, mesmo que isso levasse a um efeito-dominó (cujas consequências, é preciso dizer, seriam equivalentes a uma bomba atômica: o crédito deixaria de existir).

No fim, as instituições financeiras foram socorridas em 2008, mas os americanos comuns não tiveram a mesma sorte. No livro Dívida: os Primeiros 5.000 Anos, o antropólogo David Graeber compilou um salto no número de mandados de prisão contra devedores nos EUA. Em Minnesota, chegaram a 845 casos em 2009. A prisão por dívida é proibida pela convenção de direitos humanos. A escravidão foi universalmente proibida no século 19, mas ao longo dos milênios tornar o inadimplente escravo do credor era uma forma aceitável de quitação de dívidas.

O perdão de dívidas, por outro lado, existe desde os sumérios, a primeira civilização propriamente dita, que escreveu as leis mais antigas sobre o tema, de 3.000 a.C. Tratava-se de anistias gerais cujo objetivo principal era evitar convulsão social. Também na Bíblia existem passagens sobre o perdão de dívidas. O profeta Neemias, judeu nascido na Babilônia em 444 a.C., volta para Judeia com a autorização do Grande-Rei. Ao chegar lá, encontra uma crise social. Os camponeses pobres não conseguiam pagar impostos e os credores levavam suas crianças como pagamento. Ele concede a anistia.

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Nessa volta à Judeia, Neemias se encarrega da reconstrução do Templo de Jerusalém, destruído na guerra babilônica. No trabalho, ele encontra as leis judaicas preservadas nos livros bíblicos Êxodo, Deuteronômio e Levítico (que datam de mais ou menos 700 a.C.). Esses textos consolidam a ideia do perdão

de dívidas. A mais famosa é a lei do Jubileu: previa que as dívidas seriam automaticamente anuladas “no ano sabático” – que ocorria a cada sete anos. Pessoas que haviam sido convertidas em servos por dívida precisariam ser libertadas.

De alguma forma, a relação entre dívida e escravidão segue viva no vocabulário. Ciro Gomes, por exemplo, diz nas campanhas presidenciais que seu projeto é “libertar cada brasileiro que hoje vive escravizado pelas dívidas”. A proposta aí é renegociar os débitos a juros subsidiados a perder de vista – o que não é exatamente o perdão bíblico.

Lula também colocou no seu plano de governo um programa chamado “Desenrola”, que serviria para renegociar as dívidas ligadas às contas essenciais. E o governo Bolsonaro aprovou um plano de renegociação de dívidas do Fies com perdão de até 99% do saldo devedor, além de usar a Caixa para perdoar dívidas no começo do segundo turno da eleição.

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Quando conversei com Rabi, do Serasa, sobre o interesse em projetos de anistia de dívidas, ele invocou o moral hazard (perigo moral). A ideia é que as pessoas não se sentiriam impelidas a pagar as suas dívidas em dia, caso elas tivessem convicção do perdão logo à frente (Refis para empresas, é você?). Isso sem falar no uso de recursos públicos para grupos específicos da sociedade (ainda que 42% da população, nossa massa de endividados, não possa mais ser considerada exatamente uma minoria).

O dicionário Michaelis tem uma pista: “Perdão. Substantivo Masculino. Remissão de uma culpa, dívida ou pena”. Resta saber, como sociedade, se estamos dispostos a aplicar o sentido completo da palavra.

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