ada mais americano que hambúrguer, certo? Mais ou menos. O disco de carne bovina pode até ser símbolo da culinária yankee, mas o maior produtor é brasileiro: a Marfrig. São 247 mil toneladas de hambúrgueres por ano feitos pela empresa, que também é a segunda maior produtora de carne vermelha no mundo todo – a primeira, diga-se, é a igualmente brasileira JBS.
Essa dobradinha acontece também quando falamos só dos Estados Unidos; por lá, a JBS e a Marfrig (via National Foods, sua divisão americana) dividem o controle do setor com duas americanas, a Cargill e a Tyson Foods. Juntas, as quatro titãs da carne correspondem a 70% do mercado americano.
70% também é a fatia do faturamento da Marfrig que vem diretamente dos EUA. Ou seja, ela é basicamente uma empresa americana que negocia suas ações na B3.
E é na dinâmica dos EUA que está a explicação sobre MRFG3 ter fechado julho com uma queda de 13,5% no ano, e de 32% no acumulado de 12 meses. Desde o último pico, em outubro de 2021, o derretimento é de brutais 72%. Vejamos o que assombra o papel.
Montanha-russa bovina
A história começa na pandemia, e se desenha de maneira peculiar desde então. Quando o vírus chegou, você se lembra, obrigou todo mundo a se isolar em casa e empresas a fechar as portas temporariamente. Nisso, muitos frigoríficos paralisaram as atividades. Mas não todos. Por ser parte de um serviço essencial (alimentação), aqueles que seguiram todos os protocolos de segurança poderiam continuar funcionando. Foi o caso da empresa de Marcos Molina.
Quem tinha boi (vivo) para vender, então, viu o número de compradores subitamente restrito. Sobrava bicho e faltava demanda. Fez-se valer a lei do mercado: o preço dos bovinos despencou.
Na CME, a bolsa de Chicago, o preço do boi gordo caiu de US$ 1,27 por libra (0,45 kg) em janeiro de 2020 para US$ 0,85 em abril daquele ano, o menor patamar desde 2009. Aí a Marfrig se viu numa situação única, com sua “matéria-prima” a preço de banana e consumo do produto final seguindo a todo vapor. A margem de lucro da empresa, naturalmente, disparou.
Na contramão da crise global, a empresa fechou o apocalíptico 2020 com um lucro recorde de R$ 3,3 bilhões – bela disparada ante os R$ 218 milhões registrados no ano anterior.
E a festa estava apenas começando.
Foi em 2021 que os números da MRFG3 realmente brilharam. O preço do boi até vinha subindo desde o vale registrado em abril/2020, mas seguiu em níveis bem inferiores aos pré-pandêmicos. Ao mesmo tempo, os EUA engataram uma reabertura gradual, com a demanda dos restaurantes agora somando-se ao consumo dentro de casa.
E teve outro ponto importante: inflação. Ao mesmo tempo que a matéria-prima estava barata, o produto final ficou mais caro nas prateleiras. Muito mais caro. Em um ano, entre outubro de 2020 e de 2021, os preços do beef americano saltaram 20%. Foi uma alta ainda maior que a da inflação geral. No mesmo período, o CPI (IPCA deles) ficou em 6,2%.
Com um cenário tão singular, as margens da National Beef ultrapassaram os 20%, maior patamar histórico – num mercado no qual 8% já representaria uma cifra saudável.
Os resultados positivos foram se acumulando: no segundo trimestre de 2021, a Marfrig divulgou lucro de R$ 1,7 bi, um recorde da sua história até então. No terceiro tri, repetição da performance extraordinária: R$ 1,67 bi. Em um semestre, portanto, lucrou o equivalente a todo 2020 (que já tinha sido um ano fora da curva).
A bonança fez com que a empresa reduzisse consideravelmente sua alavancagem, o que o mercado recebeu muito bem. Esse índice (calculado pela divisão entre a dívida líquida e o Ebitda) foi para 1,45, o menor da história da Marfrig e num patamar bastante confortável – o mercado, em geral, só começa a se preocupar se esse número passa dos 2.
A época de vacas gordas levou também a Marfrig a fazer algo que não fazia desde 2010: distribuir dividendos aos seus acionistas. Foram R$ 1,9 bi pagos só em 2021, ao longo de três rodadas.
Investidores, é claro, não ficaram de fora dessa e encheram o carrinho de Marfrig. Do começo de 2020 até outubro de 2021, a ação saltou 153%, de R$ 10,15 para R$ 27,15. Naquele mesmo mês, porém, o papel entraria em rota de queda.
Não foi exatamente uma questão de resultados. A Marfrig ainda demoraria para apresentar números ruins e continuaria distribuindo dividendos (foram três rodadas em 2022), mas investidores, como sempre, estavam de olho no futuro. Em outubro de 2021, o preço do boi vivo na bolsa de Chicago tinha se recuperado e atingido o mesmo patamar de janeiro de 2020, pré-pandemia. Em novembro, chegava ao maior nível desde 2016, e sem sinal de arrefecimento.
Analistas começaram a chamar a atenção para o fim da festa. “As margens da carne bovina dos EUA estão se deteriorando mais rapidamente do que esperávamos, caindo 44% no ano”, apontou um relatório do Bradesco BBI publicado em dezembro de 2021.
Dito e feito. O preço do boi seguiu subindo numa velocidade assustadora por todo 2022, acima do previsto por todo mundo. E a alta continua. Fechou julho de 2023 no maior nível da história, a US$ 1,78/libra. Além da volta dos frigoríficos concorrentes à ativa, que deixaram os preços de 2021 para trás, também há uma redução na oferta de animais – temporadas de secas nos EUA tornaram mais caro alimentar os bois e vacas, e a produção de gado vivo diminuiu.
Com o tempo, o aumento nos custos refletiu na performance a Marfrig. E seus resultados viraram para o vermelho. No quarto trimestre de 2022, veio o primeiro prejuízo da empresa após a ótima fase: -R$ 628 milhões. No 1T23, -R$ 634 milhões. O indicador de alavancagem financeira voltou a subir e fechou março em 3,5 vezes. A ação, é claro, afundou junto.
A deterioração do ciclo da carne pegou analistas de surpresa, e não há pistas sobre quando o cenário vai melhorar. Por isso mesmo, a maioria dos que acompanham a ação mantém uma recomendação neutra. É o caso do Itaú BBA, que reitera um posicionamento “cauteloso, devido às perspectivas difíceis para os próximos anos”.
O BTG lembra que o preço da carne vermelha ainda segue em alta nos EUA – no segundo tri, subiu 17% em relação ao ano anterior –, mas o preço do boi avança mais rápido (26% no mesmo período). “Tememos que as margens ainda demorem um pouco antes de retornar aos níveis normais”, escreveram os analistas do banco em julho. Já o Bank of America prevê que as margens do segmento de carne bovina nos EUA ainda estão longe do fundo do poço: ele só viria em 2024.
Quando comparada a seus pares, a ação da Marfrig acaba sendo preterida justamente por sua concentração muito alta no mercado americano, que enfrenta essa crise do boi. A Minerva, por sua vez, virou queridinha dos analistas justamente por não ser tão afetada – sua produção acontece principalmente na América Latina e seu maior mercado internacional é a China.
Os próximos balanços da Marfrig, porém, serão cruciais para ajustar o humor do mercado. Isso porque os resultados do 2T23 e do 3T23 cobrirão o período de “grilling season” (temporada do churrasco) nos EUA, quando os americanos comemoram a estação primavera/verão com muita carne na brasa. A demanda aumentada, então, poderá trazer algum alívio para a companhia. Ou não.
Mas não só por isso os próximos balanços importam. Atualmente, uma “vantagem” da ação MRFG3 é que ela está muito barata. Quem mede isso é o índice P/L – preço sobre lucro – que divide o valor de mercado da empresa pelo lucro dos últimos 12 meses. Quanto menor, mais barato o papel. Atualmente, o resultado dessa conta para a Marfrig dá 1,41 – baratíssimo. O da JBS, por exemplo, está em 4,77; da Minerva, 9,12.
Mas cuidado. Essa conta inclui o resultado do segundo trimestre de 2022, quando a empresa teve um lucro estratosférico de R$ 4,2 bilhões. Isso aumenta demasiadamente o denominador da fração e puxa o número para baixo. Depois desse balanço, o lucro minguou e vieram inclusive dois trimestres com prejuízo. Quando os próximos balanços forem divulgados e o 2T22 sair da conta, o P/L vai deixar de parecer tão atrativo. Ou pode deixar de existir, caso os prejuízos continuem.
Ok, mas esperaí: lucro de R$ 4,2 bi no 2T22? Um recorde justamente quando o preço do boi estava subindo? Não é uma contradição. Esse lucrão não foi exatamente fruto do resultado operacional, mas de um fenômeno contábil. Em 2021, a empresa de Marcos Molina adquiriu 33% da BRF, e os ativos da companhia entraram no balanço da Marfrig no segundo semestre de 2022, o que explica o grosso do resultado. Sem essa inclusão, o lucro daquele trimestre teria sido de apenas R$ 374 milhões.
E por falar em BRF…
O frango na sala
Não é só o preço do boi que mexe na ação da Marfrig. A escolha de adquirir 33% das ações da BRF, a dona da Sadia e da Perdigão, pegou todo mundo de surpresa lá atrás. O montante tornou a Marfrig, de longe, a maior acionista da BRF, e as compras só pararam por aí porque o estatuto da companhia dizia que, se alguém quisesse adquirir mais de um terço das ações, teria que fazer uma oferta para levar todas elas. É um mecanismo conhecido como poison pill (pílula de veneno), feito justamente para evitar que alguém compre o controle de uma empresa na marra, adquirindo a maior parte das ações – a chamada aquisição hostil.
Desde então, o mercado vê esse namoro com desconfiança. Por um lado, a união faz a força: a BRF é especializada na produção de aves e suínos, enquanto a Marfrig foca na carne bovina. A diversificação torna a empresa uma concorrente ainda mais direta da JBS, que produz os três tipos de proteína animal.
E tem também a diversificação geográfica, já que a dona da Sadia e Perdigão tem forte atuação no Brasil, no Oriente Médio e na China, enquanto a Marfrig se concentra nos EUA.
O problema é que a BRF, por si só, tem suas questões; na época da compra, ela já vinha acumulando prejuízos há anos e tinha um alto nível de endividamento (índice de alavancagem de 5 vezes o Ebitda).
Além disso, o mercado de frangos e suínos é mais volátil – depende muito do preço dos grãos, que servem de alimento para os bichinhos e vivem uma crise desde a guerra na Ucrânia. No 1T23, balanço mais recente até o fechamento desta edição, a BRF registrou um prejuízo de R$ 1,02 bilhão.
Nos últimos tempos, inclusive, a Marfrig vem aparecendo no noticiário, mas como coadjuvante da sua própria controlada. Recentemente, a BRF anunciou um follow-on, ou seja, uma oferta de mais ações ao mercado. Foram 600 milhões de novos papéis vendidos.
A operação veio para levantar grana para a dona da Sadia e aliviar um pouco o seu alto endividamento. Entraram R$ 5,4 bilhões no caixa. Analistas e investidores até gostaram dessa parte, já que a BRF seguia muito endividada (alavancagem de 3,35).
O que importa especificamente para a Marfrig é que, nessa operação da BRF, a cláusula que previa o acionamento da poison pill foi extinta. Na prática, a empresa de Marcos Molino poderia, então, comprar mais ações até ter a maioria absoluta delas. A extinção da pílula de veneno foi, inclusive, uma exigência da empresa para abrir a carteira na transação. No follow-on, a Marfrig se comprometeu a entrar como compradora, e todo mundo previu que ela aumentaria sua participação no negócio.
Acontece que a Marfrig comprou “só” 200 milhões de novas ações da BRF, o suficiente apenas para manter os mesmos 33% de participação que já tinha na empresa. Isso intrigou investidores.
Na prática, vale dizer, a Marfrig já controlava a BRF, mesmo com apenas 33% das ações, desde abril de 2022, quando entrou em acordo com o então segundo maior acionista, o Previ (do Banco do Brasil), para eleger sua chapa no conselho de administração da companhia.
Quais são os planos de Molina para a empresa? No mercado, correm rumores de uma fusão completa. Em 2019, a vaca e o frango já haviam ensaiado uma união total, mas os planos não foram para a frente.
De qualquer forma, um alívio no caixa da BRF é positivo também para sua controladora. Mas nenhuma das duas companhias anda a passos sólidos a ponto de acalmar o mercado, e a incerteza sobre esse casamento segue.