As ações do setor de educação sobem forte na bolsa, em paralelo às promessas do governo de engrossar o caldo de alunos atendidos pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) — a Yduqs foi para a dianteira do Ibovespa, acumulando uma alta de mais de 100% entre janeiro e agosto.
Se bateu uma sensação de déjà-vu ao ler o parágrafo anterior, não estranhe. O movimento visto ao longo de 2023 é semelhante ao do início da década de 2010, quando Lula passou o bastão para Dilma Rousseff e o Fies fez bilhões de reais jorrarem em direção aos cofres das empresas de ensino superior.
Apesar da expectativa gerada pelo olhar no retrovisor e dos detalhes quase inexistentes sobre um eventual aumento do programa, desta vez espera-se um final diferente para as empresas — um em que o sucesso ou fracasso do Fies não seja a diferença entre um boletim nota 10 ou mais um longo período na recuperação.
O programa levou milhões de novos alunos para as salas de aula entre 2010 e 2017; mas, para as companhias listadas na B3 – Ânima (ANIM3), Cruzeiro do Sul (CSED3), Cogna (COGN3) e Ser Educacional (SEER3), além da Yduqs (YDUQ3) –, o modelo não se mostrou sustentável.
Os últimos anos não foram fáceis para as educacionais. Os dois maiores players do setor, Cogna e Yduqs – que, em 2010 respondiam pelos nomes de Kroton e Estácio, respectivamente —, amargaram desvalorizações de mais de 70% na bolsa entre 2017 e 2022. Quando a torneira do Fies fechou, parte da confiança dos investidores acabou descendo pelo ralo.
O número de contratos (ou seja, de alunos financiados pelo governo) tinha ultrapassado a casa dos 700 mil em 2014; hoje, não chega a 40 mil. O repasse financeiro anual, que já foi de R$ 20 bilhões, não passou da casa dos R$ 4 bi em 2022.
Não dá para colocar os anos de amargura apenas na conta do corte no programa de financiamento estudantil, mas os maiores problemas surgiram a partir dele: estruturas inchadas, endividamento estratosférico das instituições de ensino e uma briga acirrada para conseguir encher as salas de aula, para citar alguns. Sem falar no período de recessão econômica (2015-2016) e na pandemia.
Antes dos problemas, de qualquer forma, o Fies fez o mercado de ensino superior no país florescer. E é numa segunda Era de Ouro que parte dos investidores aposta em 2023. Brasília, no entanto, não é a única razão por trás da forte alta dos papéis do setor. Para voltar a ver a luz do sol — e dinheiro entrando no caixa —, foi preciso fazer uma longa e demorada lição de casa.
Para além do Fies, 2023 tem sido o ano em que os frutos plantados no passado começam a ser colhidos — e o mercado está gostando do que tem visto.
Uma aula de história
Para entender o presente, é preciso dar um salto no passado — mais especificamente ao ano de 2011, no mandato de Dilma Rousseff. O início da primeira Era de Ouro.
O Fies nasceu em 1999, mas foi em 2010, ao fim do segundo governo Lula, que a popularidade do programa cresceu. Foram feitas mudanças nas regras de concessão de crédito e uma ampliação no orçamento disponível, mas esse foi só o aquecimento.
No ano seguinte, a alta foi vertiginosa. Segundo dados do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), responsável pela operação do Fies, o número de contratos firmados mais que dobrou entre 2010 e 2011, chegando à marca de 154 mil.
Até o recorde, em 2014, com 732,6 mil novos alunos beneficiados, o número não parou de crescer. Entre 2010 até 2015, o governo repassou R$ 41 bilhões às instituições.
O problema é que a economia brasileira já não era a mesma do início do século. Era preciso redesenhar o programa e enxugar os gastos, com as regras sendo endurecidas já em 2015. Os cortes continuaram crescendo nas gestões de Michel Temer e Jair Bolsonaro; em 2023, foram firmados apenas 37 mil contratos.
Antes de a torneira fechar, Cogna e Yduqs chegaram a ver suas ações triplicarem de valor em pouco mais de dois anos, justamente no período de vacas gordas do Fies. Mas, assim como a alta, a queda também aconteceu de forma rápida.
Houve alguns períodos de recuperação em meio ao caos. O primeiro deles veio em 2017, quando ainda existiam 1,4 milhão de alunos matriculados pelo Fies, — os ingressantes de 2014 e os que entraram nos anos seguintes. Não por acaso, o repasse financeiro recorde feito pelo governo federal ocorreu em 2017, com quase R$ 21 bilhões destinados ao programa.
Assim que a última grande leva de alunos do auge do Fies começou a pegar o diploma, as empresas passaram a ter dificuldade para encher as salas de aula no mesmo ritmo. O resultado foi um endividamento recorde das educacionais — afinal, foi preciso investir pesado para conseguir absorver a forte demanda lá de trás, e agora ela tinha minguado.
As ações só voltaram a viver dias melhores entre 2019 e o início de 2020, período cheio de expectativas positivas para a bolsa, mas o bom momento foi bruscamente interrompido pela pandemia do coronavírus.
A lição de casa
Sem o Fies no mesmo ritmo de antes, foi impossível manter o mesmo desempenho operacional. Era hora de reorganizar a casa.
Em linhas gerais, a estratégia foi investir pesado na migração dos seus cursos mais populares e de menor mensalidade para o ensino à distância (EAD), antes mesmo da pandemia. A ideia era reduzir o custo por aluno.
Não foi uma tarefa fácil. O marco regulatório do EAD (aprovado em 2017) esbarrou na resistência de parte da sociedade, com um grande temor de que os cursos não tivessem a mesma qualidade daqueles oferecidos presencialmente.
Essa não foi a única equação difícil de resolver. Sem o Fies para alimentar as faculdades com novos calouros, caçar alunos para preencher as salas de aula foi como procurar por água no deserto da Saara.
O jeito foi partir para a pancadaria — uma verdadeira guerra de preços que se estendeu de 2017 a 2022. Na briga pelo aluno, as instituições não conseguiam repassar nem mesmo o custo da inflação no preço das mensalidades, e estratégias agressivas de marketing seguiram pressionando as margens das empresas.
A pandemia só veio adicionar mais problemas. Apesar de ter ampliado a aceitação do EAD, reduziu ainda mais a captação de alunos, aumentou a evasão e fez subir a inadimplência.
Foi um massacre operacional para as empresas. As más notícias surgiam até entre os alunos que ficaram: sem acesso aos prédios, laboratórios e outras instalações ao longo do isolamento social, muitos ganharam na Justiça o direito de desconto nas mensalidades.
Mas, apesar dos pesares, a digitalização forçada serviu para encaixar as peças que faltavam para as companhias acelerarem seus planos de reestruturação.
A massificação do ensino à distância ajudou a dissipar o estigma de que o EAD era um curso de segunda linha; no retorno às atividades presenciais, foi mais fácil para as empresas promoverem mudanças em seus prédios e campi. Era hora de cortar na carne os maiores custos.
Grandes campi deram lugar a polos estratégicos de apoio para estudantes em regime EAD, com estruturas mais baratas do que as empregadas anteriormente – e com ajuste na infraestrutura física e administrativa para se alinhar ao novo contexto. Mas esse não é um processo simples, e os resultados não foram imediatos.
Devolução de prédios, renegociação de contratos, cortes no quadro de funcionários… Tudo isso trouxe custos extraordinários que pressionaram os balanços por alguns trimestres. Somente em 2023 os resultados passaram a refletir a mudança.
Para Caio Moscardini, analista do Santander, cada empresa começou o movimento de reestruturação em um momento distinto, o que ajuda a explicar a diferença no desempenho das companhias na bolsa. A Yduqs, que sobe como um foguete, foi justamente a que deu o primeiro passo, ainda em 2018.
Operação jaleco branco
Na busca pela sobrevivência, apenas cortar custos e migrar para o ambiente digital não era o suficiente — e o setor sabia disso. Era preciso encontrar uma nova galinha de ovos de ouro.
Apesar de o EAD garantir uma base ampla de alunos a custo mais baixo, o tíquete médio dos cursos que podem ser dados totalmente à distância dificulta a geração de caixa. A exposição maior às classes C e D também traz um risco mais alto de inadimplência.
Por isso, a estratégia principal das companhias passou a ser a diversificação de portfólio, com cursos mais atrativos para as classes A e B — é o chamado segmento premium, voltado principalmente (mas não somente) para a área de saúde.
Se nas graduações mais comuns, como pedagogia e direito, o tíquete médio não ultrapassa a casa dos R$ 1 mil, nos cursos de medicina, odontologia e veterinária as mensalidades podem passar dos R$ 13 mil. E, ao contrário da guerra de preços do passado, a demanda maior que a oferta de cursos nessas áreas garante a permanência dos preços altos de forma saudável para os competidores.
Para Rafael Cota Maciel, gestor de renda variável da Inter Asset, Ânima e Yduqs foram as que mais se esforçaram para buscar segmentos premium nos últimos anos, mas isso tem uma contrapartida dolorida no balanço: a do salto no endividamento.
Um dos movimentos mais ousados nesse sentido foi feito pela Yduqs em 2019, na compra da Adtalem. A companhia desembolsou mais de R$ 2 bilhões para ter acesso a marcas de grande valor agregado, como a escola de negócios Ibmec, além de uma faculdade de medicina (a Facid), com mais de 500 matriculados.
5% foi a representatividade do Fies na receita operacional da Yduqs no 1S23, contra 29% em 2018.
A Era da Independência
De volta a 2023, as conversas sobre um novo Fies estão apenas começando. E, tendo em vista o passado transformador, sua versão 2.0 é sim um fator que coloca um holofote sobre as ações. Mas os analistas ainda são céticos sobre o verdadeiro potencial do programa.
Apesar de o ministro da Educação, Camilo Santana, já ter dito em entrevistas que pretende lançar o “Fies Social”, até agora pouco se tem de concreto.
Procurado, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que a discussão da mudança no Fies é responsabilidade de um grupo de trabalho (GT) que tem como tarefa realizar diagnósticos sobre a situação atual e apresentar propostas. A portaria que instituiu o GT foi publicada em 6 de março, com duração de 180 dias — o prazo oficial expirou no fim agosto, mas há a possibilidade de prorrogação.
Recentemente, a mudança mais significativa foi o aumento do limite de financiamento para o curso de medicina — passando de R$ 8,8 mil para R$ 10 mil por mês. A medida passou a valer em junho.
Para Leandro Bastos, analista do Citi, a indústria hoje é muito diferente do que era no passado, principalmente após o crescimento do ensino à distância e a maior abertura dos alunos para cursos híbridos, o que deixa as companhias muito mais sólidas e perenes em um ambiente sem Fies. E as empresas fazem questão de ressaltar isso.
No caso da Yduqs, a representatividade do Fies na receita líquida operacional caiu de 29% em 2018 para apenas 5% no primeiro semestre de 2023. Em contrapartida, o volume total vindo dos braços de cursos premium e digitais passou de 22% para 57% no mesmo período.
Na Cogna, dos quase 1 milhão de alunos que compõem a base da companhia, apenas 5,7 mil são beneficiários do Fies. Na Ser Educacional, o fundo é caracterizado como pouco relevante pela administração, sendo responsável por apenas 5% do total de estudantes.
Fábio Fossen, CEO da Cruzeiro do Sul (alta de 18% no ano), afirma que o fundo é uma ferramenta de apoio ao estudante, não um subsídio de crescimento. “Na atual conjuntura, não ancoramos nossa estratégia de expansão na presença ou ausência do Fies. Estamos preparados para expandir em consonância, sem condicionar nosso crescimento a ele.”
Em nota, a Cogna afirmou que o potencial novo programa não está em nenhuma projeção interna, “apesar do know how que a companhia tem para operar o Fies de maneira eficiente”, e que, a depender do formato, pode sim ser um complemento estratégico no crescimento.
Segundo Janyo Diniz, diretor presidente da Ser Educacional, uma eventual mudança no Fies também pode ter valor estratégico no objetivo de aumentar a demanda em cidades com IDH mais baixo, ajudando na ocupação média das salas de aula onde a companhia já atua ou até mesmo viabilizando novos cursos em regiões em que gostariam de atuar.
A Yduqs e a Ânima também foram procuradas pela reportagem, mas não responderam aos questionamentos.
O Brasil também ajuda
No segundo trimestre deste ano, o setor impressionou. A Cogna aumentou a receita líquida e o Ebitda em 20%, revertendo o prejuízo registrado um ano antes – dando fôlego para os papéis acumularem um avanço de 42% em 2023. A Yduqs também saiu do vermelho, com um lucro de R$ 51,6 milhões e uma alta de 11,3% em sua base de alunos premium. A Ser Educacional foi mais uma que deixou os dias de perda no passado, com um ganho de R$ 31,3 mi no período.
Não são apenas os resultados operacionais das companhias que sustentam o rali. O mês de agosto não foi dos melhores para o Ibovespa, mas, no geral, as perspectivas para a bolsa e para a economia brasileira estão superiores ao que se via na virada do ano.
O arcabouço fiscal foi aprovado, os dados do mercado de trabalho evoluíram positivamente, a inflação voltou para a casa dos 4% e a Selic iniciou a sua trajetória de queda. Todos esses fatores ajudam a economia a aquecer — e para empresas com alto nível de alavancagem, uma Selic mais baixa pressiona menos o caixa.
Mas vale lembrar que escolher um curso de ensino superior não é como comprar um sofá novo ou trocar de óculos. Trata-se de um investimento de, no mínimo, quatro anos. Com a recuperação ainda recente, deve levar mais alguns trimestres até que o retorno dos alunos para a sala de aula atinja um novo platô elevado.
“Não dá para afirmar que você já tem um movimento positivo de repasse de preços e que está todo mundo querendo estudar de novo. Isso não aconteceu. Mas dá para dizer que a oferta das empresas está focada em cursos mais caros”, explica Thiago Duarte, analista da Asa Investments.
Outro fator citado pelos analistas como determinante para o movimento visto ao longo de 2023 é puramente técnico* — com a Selic a 13,75% e o cenário macroeconômico adverso para empresas de consumo, os papéis ficaram “esquecidos” na bolsa.
“É um setor que não tem a atenção que deveria ter. Algumas empresas vêm fazendo um belo trabalho nos últimos anos e o Fies, sem dúvida, é um chamariz para o investidor, inclusive o institucional. Temos companhias muito boas e que estão preparadas para um eventual crescimento da demanda pelo ensino superior no país”, aponta Maciel, da Inter Asset.
Nos cálculos de Caio Moscardini, do Santander, as empresas de educação seguem baratas na bolsa (até 29 de agosto de 2023, data do fechamento desta edição). A atenção agora segue na geração de caixa das companhias.
A expectativa: se houver continuidade na dinâmica de melhoria de resultados, o setor deve seguir surpreendendo positivamente.
Boletim nota 10?
Apesar dos avanços, o consenso entre os analistas parece ser o de que algumas empresas ainda possuem lições de casa por fazer.
“A Yduqs sempre foi assertiva em antecipar tendências ou se preparar para as mudanças do mercado. Ela se destaca e não é à toa”, apontou em off um gestor que tem posição no papel. A disciplina financeira e o trabalho feito até aqui é o ponto forte da companhia.
Já a Ser Educacional (44% no ano) e a Ânima (2,6%) ainda despertam algumas dúvidas. No caso da Ser, a preocupação é com a dificuldade para diversificar o seu portfólio — seja na oferta de produtos ou em sua atuação geográfica, hoje concentrada no Norte e Nordeste.
Com ganhos mirrados no ano, a Ânima destoa do restante das suas companheiras de setor e foi a única empresa a decepcionar no segundo trimestre — o prejuízo mais que dobrou, indo a R$ 50,2 milhões, enquanto a dívida líquida cresceu 17,9%, a R$ 2,7 bilhões. Depois da divulgação dos resultados, a ação apagou os ganhos expressivos que vinha acumulando.
Para o Santander, a decepção do mercado está na velocidade do crescimento de receita e a dificuldade em melhorar a sua margem financeira. “A empresa ainda tem um problema, que é a alavancagem altíssima. Quando olhamos a geração de caixa, ela é toda tomada pelo pagamento de juros”, aponta Moscardini.
57% foi a fatia dos cursos premium e digitais na receita da Yduqs, contra 22% em 2018.
Vinicius Figueiredo, do Itaú BBA, também vê o endividamento como o pior ponto do balanço da companhia, porque além de consumir o caixa, acaba dificultando a precificação dos outros braços de negócio. “Quando olhamos para as marcas que a empresa tem, são ativos com uma qualidade muito boa.”
Ainda é cedo para cravar que o setor está entrando em sua segunda Era de Ouro. E nenhum analista nega que uma turbinada no Fies pode dar um gás extra nos papéis, e que uma eventual decepção possa pesar nas ações. Com ou sem o fundo, de qualquer forma, a certeza é que as empresas de educação devem seguir fazendo barulho na bolsa.