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Cripto 3.0: revolução ou pirâmide?

Metaverso, games que rendem dinheiro, finanças descentralizadas. Essas criaturas estão por trás de criptomoedas que valorizaram mais de 1.000% nos últimos meses. Entenda o novo capítulo da saga cripto – e conheça melhor as oportunidades e os riscos que ela traz.

Por Alexandre Versignassi | Design e colagens: Tiago Araujo
Atualizado em 6 set 2022, 12h08 - Publicado em 14 jan 2022, 07h30
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  • Existem milhares de criptomoedas. Uma delas, claro, é o Bitcoin. Outra é a Smooth Love Potion – “Suave Poção do Amor”, que atende pela sigla “SLP”. No início de 2022, cada um dos 3,2 bilhões de SLPs em circulação estava cotado a US$ 0,026. Somando tudo: US$ 84 milhões, o que faz dele a cripto número 493 em valor de mercado.

    O SLP não joga na mesma liga do Bitcoin. A mãe de todas as criptomoedas foi criada para um dia, quem sabe, substituir o dinheiro convencional. O SLP não. Ele é a moeda de um game, o Axie Infinity. Um joguinho que une biologia e economia.

    Trata-se de um joguinho de luta entre “Axies” – monstrinhos fofos, estilo Pokémon, que os jogadores criam como se fossem galos de briga. No submundo das rinhas de verdade, há os “galos reprodutores”. Os filhos das aves mais fortes e agressivas valem um bom dinheiro, já que tendem a herdar características do pai e garantir vitórias aos criadores lá na frente.

    Com os Axies é parecido. Você, criador, é dono de um time de monstrinhos. Eles são machos e fêmeas ao mesmo tempo, então podem se reproduzir entre si. Para contar com Axies competitivos, você terá de reproduzi-los. Faça um Axie bom de ataque e um bom de defesa conhecerem-se biblicamente, e eles darão à luz um novo monstrinho, que ataca com tanta força quanto o genitor número 1 e se protege com a eficiência do genitor número 2.

    Bem bolado. É a mesma tática que a natureza inventou para aprimorar os seres vivos. Essa é a parte biológica do game. Vamos à econômica. Os Axies são frígidos. Só fazem sexo se você lhes fornecer doses da “Poção do Amor” do jogo, os SLPs. A primeira reprodução custa 150 SLPs, depois vai ficando mais caro. Como você arranja SLPs? Vencendo lutas contra Axies de outros jogadores.

    Quanto mais vitórias, mais SLPs. Quanto mais SLPs, mais reprodução; e quanto mais reprodução, mais evolução. Não falta, porém, gente a fim de acelerar o processo. Esse pessoal prefere comprar SLPs dos outros de uma vez, e já entrar em suas primeiras brigas virtuais com monstrinhos mais poderosos.

    Isso cria uma demanda para SLPs no mundo real. Moedas de game, obtidas com esforços dentro do game, passam a valer dinheiro de verdade. Não aconteceu por acaso. Os criadores do Axie Infinity já tinham isso em mente. O jogo roda sobre uma plataforma de blockchain. Isso permite que cada SLP ganho lá dentro funcione como uma criptomoeda. Você pode baixar os SLPs para a sua carteira eletrônica, a mesma que você eventualmente use para guardar criptos mais famosas.

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    Para todos os efeitos, equivale a depositar moedas de game numa conta do Bradesco. Tem coisas que só a blockchain faz por você, afinal. Com os SLPs na sua carteira, eles passam a ser propriedade sua. Aí você faz o que quiser com eles – inclusive vendê-los nas corretoras de cripto para tirar uma renda extra.

    Lindo. Mas calma: há caroços nesse angu.

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    Play to Earn

    O Axie Infinity é o maior entre os games do tipo play to earn (jogue para ganhar): aqueles que remuneram seus usuários não com pontos, mas com criptomoedas emitidas pelos criadores do jogo, e que tenham alguma função dentro do game.

    Essa modalidade, vale notar, só faz sentido se houver uma comunidade grande de jogadores. Sem isso, não há mercado para as tais criptos, e elas não vão valer nada. Era assim com o Axie Infinity no início. Ele foi criado em 2018 por uma produtora de games do Vietnã, a Sky Mavis. E o SLP não tinha cotação alguma, por absoluta falta de demanda. O jogo passou anos no limbo. Mas no início de 2021 rolou uma virada. Por obra do acaso, o game ficou popular nas Filipinas. Agora havia um mercado para o SLP. O valor de cada um nas corretoras de cripto saltou de zero para US$ 0,10 em março. Um bom jogador conseguia levantar mais de 300 SLPs por dia. Com cada um valendo US$ 0,10, isso significava US$ 900 ao mês. Ou seja: um “salário” de R$ 5 mil.

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    Aí pronto: a fama do Axie Infinity passou a correr o mundo. Isso de ganhar dinheiro jogando (sem ser parte de um time de e-sports ou coisa que o valha) parecia bom demais para ser verdade. Mas era verdade. E o jogo passou a contar com uma comunidade global de usuários.

    Com mais gente na brincadeira, o SLP decolou de vez. Em julho, estava cotado a US$ 0,34 – o que faria nosso bom jogador tirar R$ 17 mil por mês. Uau.

    Só tem um detalhe. O jogo não virou febre por ser gostoso de jogar. Trata-se de um game chato, primitivo, se comparado a qualquer coisa que existe por aí para PS5 e cia. Basicamente todo mundo entra ali para ver se ganha dinheiro. Aí temos um problema.

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    Monstrinhos do Axie Infinity, maior expoente entre os games que remuneram seus jogadores com cripto. (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)

    Toda a grana que os jogadores ganham vem de gente a fim de entrar na roda para ver se ganha mais dinheiro. Isso faz do Axie Infinity uma pirâmide financeira.

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    Toda pirâmide dá dinheiro gordo aos primeiros entrantes. Sempre chovem histórias de gente se gabando de ter ganhado os tubos no esquema. Essas histórias vão se espalhando e atraem cada vez mais gente para o bolo. O pessoal do topo da pirâmide passa a ganhar mais ainda – nesse caso, via valorização do SLP.

    Mas o suprimento de novos entrantes é um recurso finito. Quem aderiu há menos tempo e está na base da pirâmide, no caso do Axie Infinity, não consegue competir com os veteranos – como os filipinos que começaram no início de 2021 e hoje lutam com times de monstrinhos praticamente invencíveis. Você entra para ganhar dinheiro, mas só perde.

    O dinheiro que você gastou para comprar SLPs vira pó. O que começa a se espalhar, então, são as histórias de quem ficou no prejuízo. O número de novas pessoas a fim de tentar a sorte cai. A pirâmide vai perdendo sua base – e começa a ruir.

    Foi o que aconteceu com a pirâmide do SLP. Como dissemos lá no início, ele vale menos de US$ 0,03 hoje – uma queda de 90% em relação ao pico. Isso ceifou a rentabilidade dos jogadores, incluindo os mais experientes.

    O SLP, vale notar, não é a única cripto ligada ao Axie Infinity. A Sky Mavis mantém outra, o AXS. A diferença é a seguinte: o suprimento de SLPs é infinito, já que o sistema gera essa cripto o tempo todo, como prêmio para os vencedores das lutas entre monstrinhos. Isso por si só já cria desvalorização – igual acontece com as moedas comuns; se o governo depositar R$ 1 milhão na conta de cada brasileiro, o valor do real vai para as cucuias. No dia seguinte, você vai precisar de R$ 10 mil para comprar um pãozinho.

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    Para evitar isso, então, o AXS tem uma tiragem limitada. Hoje, circulam 61 milhões de AXSs. E a Sky Mavis se compromete a parar em 270 milhões de unidades. É a mesma filosofia do Bitcoin, como veremos mais adiante.

    Também é quase impossível ganhar AXSs jogando: a Sky Mavis distribui alguns entre os mil melhores jogadores de cada mês. Na rodada mais recente, o primeiro colocado ganhou 135.

    Para que serve o AXS? Bom, você precisa de um deles para dar início à reprodução dos monstrinhos, junto às doses de SLP. Só isso. Mas o simples fato de ele ter um suprimento limitado, tal qual a mais célebre das criptos, enlouqueceu o mercado.

    A Sky Mavis vendia AXSs por US$ 0,54 no início de 2021, quando o Axie Infinity não tinha pegado nem nas Filipinas. Em novembro, ele era negociado entre investidores por US$ 160. Uma alta de 29.500%, capaz de transformar cada R$ 1.000 aplicados ali em quase R$ 300 mil.

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    Provavelmente, muitos investidores nem sabiam o que era o Axie Infinity. Não tinha lógica o AXS seguir para o alto e avante ao mesmo tempo em que o SLP derretia. O valor do SLP, afinal, é a essência do jogo. É a coisa que fez o game virar mania. Sem isso, ele não tem razão de existir.

    A alta do AXS estendeu-se para além do colapso do SLP porque, provavelmente, as pessoas mal sabiam o que estavam comprando. Para um gestor profissional de fundos, por exemplo, pega mal ver o filho da vizinha tirar 29.500% no ano e ele ali, lutando para sair do vermelho.

    Então esses gestores acabam engordando a fila de especulação, com o dinheiro de seus clientes – e levam a valorizações tão estupendas quanto desprovidas de fundamentos. Mas pobre de quem fez isso justamente em novembro. De lá para cá, o AXS caiu 33%. Cada R$ 1.000 ali virou R$ 670.

    Mesmo assim, ele segue como uma das maiores criptomoedas do planeta. Sim. Juntos, todos os AXSs em circulação hoje valem US$ 5,8 bilhões, o que faz dele a 33ª cripto em valor de mercado.

    Isso acontece porque o termo play to earn se tornou uma palavra mágica no mercado. Qualquer projeto que envolva esse conceito ganha os holofotes, por mais que a ideia de fazer dinheiro sem produzir nada, apenas acumulando pontos de videogame, não seja algo sustentável.

    Outro termo com mais hype do que substância, ao menos por enquanto, é “metaverso” – uma palavra nova para um conceito antigo: o de ambientes de realidade virtual nos quais você interage com outras pessoas por meio de avatares. Lembra do Second Life, que apareceu lá na década passada? É por aí.

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    A diferença: na versão contemporânea do metaverso, as pessoas comercializam terrenos virtuais dentro de sistemas de blockchain, via NFTs – sigla em inglês para “Tokens Não Fungíveis”. “Token” significa objeto virtual.

    “Não fungível” é “não substituível”. Para explicar esses conceitos de forma realmente cristalina, precisamos dar uma pausa e voltar um pouco no tempo, para a época da criação da primeira blockchain da história: a do Bitcoin.

    Era o final dos anos 2000. Uma comunidade de programadores da Califórnia tentava desenvolver uma moeda eletrônica “artesanal” que fosse capaz de substituir o dinheiro como o conhecemos. Era uma ideia anárquica, que tinha como objetivo final tornar os cidadãos independentes dos bancos centrais, que emitem as moedas, e do sistema financeiro, que as distribui.

    Para isso, precisavam de algo que resolvesse duas questões fundamentais:

    As unidades desse novo dinheiro precisariam ser incopiáveis. Não tem como você dar Ctrl+C na sua conta do Itaú e depois dar Ctrl+V na sua conta do Nubank para aumentar o seu saldo lá, certo? Com aquilo que viria a se chamar Bitcoin teria de ser igual.

    Era preciso evitar o “gasto duplo”. Quando você paga no débito, ploft. O dinheiro desaparece da sua conta, graças ao poder de computação dos bancos, que registram e calculam tudo na hora. Reproduzir essa capacidade sem contar com servidores zilionários não é trivial.

    Bom, para resolver o problema 1, criaram um sistema de criptografia. Arquivos criptografados trazem uma espécie de assinatura interna tão codificada que os torna impossíveis de copiar. Dessa forma, cada Bitcoin seria único. Imune a Ctrl+C, Ctrl+V.

    Para solucionar a questão número 2, inspiraram-se nas redes de torrent, o sistema de distribuição de filmes pirateados, que existia desde 2001. Uma rede de torrents não tem dono. É um sistema autônomo. Os filmes não estão em um servidor central (como os da Netflix), mas espalhados pelas máquinas de milhões de usuários.

    Os criadores do Bitcoin entenderam que um sistema assim, em rede, descentralizado, poderia fornecer o poder de computação necessário para administrar a circulação da nova moeda.

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    Também adicionam uma camada extra de segurança. Cada transação de Bitcoin fica registrada para sempre nessa rede. Se eu transferir uma fração de Bitcoin para você, o registro dessa transação vai ficar tatuado para o resto da vida em arquivos dentro do próprio sistema que emite a moeda. É algo que não existe no dinheiro comum.

    A esses arquivos que registram as transações, deram o nome de “blocos”. À rede em si, “cadeia de blocos” – blockchain. E a primeira unidade de Bitcoin seria produzida em 3 janeiro de 2009.

    Hoje há 18,9 milhões de Bitcoins em circulação. E a quantidade máxima será de 21 milhões. É que a ideia, desde o princípio, era produzir uma moeda que emulasse o ouro, que fosse um recurso permanentemente escasso.

    O preço de uma casa em dólares ou em reais sobe todo ano. Essas moedas, afinal, inflacionam. Os governos as tratam como SLPs: produzem mais o tempo todo para estimular a economia. Por isso todas as coisas sobem de preço ao longo do tempo – às vezes mais rápido, como agora, às vezes mais devagar, seja no país que for. Já o preço de uma casa em ouro não muda. O que aumenta é a quantidade de dinheiro que você precisa para comprar ouro.

    Também não há uma empresa por trás do Bitcoin. O sistema é automático. Os donos das máquinas que fornecem poder de computação à rede recebem frações de Bitcoin como recompensa por esse serviço. À busca por essas recompensas dá-se o nome de mineração.

    Enquanto houver gente a fim de minerar, o sistema funcionará sem sobressaltos. E isso vai durar um bom tempo ainda: o sistema diminui as recompensas ao longo dos anos, e foi calibrado para que a última unidade de Bitcoin só seja minerada no ano de 2140.

    Esse caráter descentralizado e imune à inflação fez com que o Bitcoin ganhasse adeptos, e seu valor foi crescendo. No início de 2016, cada unidade era comercializada por US$ 500. Hoje, por US$ 47 mil. Uma alta de 9.300% em seis anos, que elevou o valor de mercado do Bitcoin a quase US$ 900 bilhões.

    Por conta disso, hoje há duas categorias entre as pessoas que compram e guardam Bitcoins. O pessoal raiz, que acredita que um dia as moedas comuns vão perder todo o seu valor para a inflação, e acabarão substituídas pelo Bitcoin, e a massa que compra a cripto sem mal saber do que se trata, na torcida para revendê-la mais caro depois – sonhando com um lucro de 10.000%, assim como devaneiam com a ideia de uma vitória na Mega-Sena.

    Isso é um sinal de alerta. Não há indício de que o Bitcoin será um dia usado como moeda de troca para valer, muito menos de que tomará o lugar das moedas comuns. E qualquer coisa que as pessoas compram só na esperança de vender mais caro depois tende a ruir.

    Sim, pessoas também compram ações, imóveis e ouro com isso em mente. Mas ações pagam dividendos, imóveis servem para que você não more na rua e ouro os humanos penduram no pescoço ou no pulso há 7 mil anos para demonstrar status.

    Essas propriedades conferem “valor intrínseco”. O Bitcoin não. Ele não tem valor intrínseco. São arquivos que não dá para pendurar no pescoço, não geram dividendos nem providenciam teto. E quando pessoas colocam dinheiro aos montes em algo assim, o que temos é uma versão moderna da Mania das Tulipas – a febre especulativa da Holanda do século 17 que fez com que certas flores passassem a custar tanto quanto uma casa. Igual acontece hoje com o Bitcoin.

    “Eu comprei Bitcoin. Não para obter ganho de capital, mas para contar com uma alternativa ao dinheiro emitido por bancos centrais. Uma moeda sem governo”, disse Nicholas Nassim Taleb, um guru do mercado financeiro, numa entrevista à CNBC. “Mas percebi que era pura especulação. Um jogo. Você pode criar outro jogo e dizer que ele é uma moeda.”

    Foi precisamente o que fizeram. Após o Bitcoin, foram surgindo várias criptos com a proposta de servir como “ouro digital”. Um caso emblemático é o do Dogecoin. Ele foi lançado por dois programadores ainda em 2013, como uma tiração de sarro contra a bolha especulativa que já se formava em torno do Bitcoin. Por ser uma piada, tinha valor zero. Não havia interessados, afinal.

    Em 2020, porém, Elon Musk em pessoa passou a escrever tuítes dizendo que o Dogecoin poderia, sim, substituir as moedas comuns. Que seria a “cripto do povo”. Sabe-se de lá de onde ele tirou tal disparate, mas bastou para que a cotação do Dogecoin saísse do zero para os atuais US$ 0,17. Graças ao mais puro efeito manada, suas 132 bilhões de unidades somam hoje US$ 22 bilhões. É a 10ª maior cripto em valor de mercado.

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    Elon Musk, o responsável pela fama e fortuna do Dogecoin, e um cão da raça Shiba, símbolo da cripto. (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)

    Ethereum

    Tem outro lado nessa história. São poucas as criptos de hoje que pretendem substituir o dinheiro. O Ethereum (ETH) é a segunda maior, com grossos US$ 450 bilhões em valor de mercado. E, de fato, ela nunca teve essa ambição totalitarista. Para o que serve o ETH, então?

    O ETH é a cripto que serve de combustível para a blockchain do Ethereum, fundada em 2014. E essa rede deles traz um pulo do gato. O propósito final ali não é criar uma moeda. É explorar sua blockchain para produzir algo mais interessante.

    Lembra aquela característica da blockchain do Bitcoin, a de produzir blocos de informação que registram para sempre as transações com a criptomoeda? Então.

    Pense na matrícula de um apartamento antigo, que já teve vários proprietários. Caso você nunca tenha visto uma, é assim: ela registra todas as pessoas que foram donas do imóvel, e o último registro é o nome do dono atual. Trata-se de um instrumento útil para assegurar que a propriedade é sua. Se alguém contestar, dizendo que o apartamento na verdade é dele, haverá uma longa lista provando que o contestador jamais comprou aquele imóvel.

    Uma blockchain faz exatamente isso. O lance de registrar as transações de forma eterna e inviolável surgiu para conferir segurança à primeira cripto, mas também é útil para produzir coisas que “valem mais do que dinheiro”. No caso, certificados de propriedade.

    Ah: a matrícula de um imóvel também vem num papel especial, com marcas d’água, igual a uma nota de dinheiro. É para mostrar que esse documento é algo único, incopiável, “não fungível”.
    E isso uma blockchain também faz.

    Com esses conceitos na cabeça, os criadores da rede Ethereum criaram a base para a emissão de “escrituras” de objetos virtuais – coisa que o sistema do Bitcoin não faz, já que ele é especializado em produzir Bitcoins, e nada mais.

    Depois da blockchain do Ethereum, a primeira capaz de registrar escrituras assim, surgiram várias outras blockchains com o mesmo poder. Vamos falar de algumas delas mais adiante. Porque agora é hora de voltar às NFTs. E à entidade que elas pariram: o metaverso.

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    Stable coins: criptos pareadas com o dólar alimentam o universo das finanças descentralizadas. (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)

    Metaverso

    Uma NFT é um objeto virtual com escritura. No Axie Infinity, por exemplo, os monstrinhos que você cria e aprimora são NFTs. Isso garante que você é proprietário dos monstros. Se quiser vendê-los, tranquilo. A venda precisa ser em troca de ETHs, já que a NFT e a cripto na qual ela será comercializada devem fazer parte da mesma rede. Nesse caso, a do Ethereum mesmo. É que blockchains diferentes não conversam entre si.

    Vale o mesmo para os terrenos do “metaverso”. Deixo entre aspas nesta menção porque, na real, não existe um único metaverso. São vários, isolados em diferentes redes de blockchain. Então fica confuso usar o termo no singular, como se fala por aí. Vamos no plural: metaversos – ou seja, sites e aplicativos que comercializam terrenos virtuais na forma de NFTs.

    O maior entre esses apps hoje é a Decentraland, que também registra seus lotes no “cartório” do Ethereum. Os usuários dessa plataforma movimentam US$ 6 milhões por semana no comércio de terrenos e outros itens lá dentro. Em novembro, um único latifúndio desse metaverso foi vendido por US$ 2 milhões.

    Para comprar imóveis na Decentraland você precisa da cripto deles, o MANA, que também roda dentro da rede do Ethereum (sim, o pessoal não cria só NFTs nessa blockchain, pode criar outras criptos também – até por isso existem tantas hoje).

    Mas nem todos os metaversos rodam na Ethereum. A Sandbox, concorrente da Decentraland, usa outra rede de blockchain: a da Binance (uma empresa que, além de manter uma rede própria, é a maior corretora de cripto do mundo).

    A Binance conta com uma moeda própria dentro de sua blockchain, já que não precisa pegar carona na do Ethereum. É a Binance Coin (BNB). Ela começou pequena, mas já vale US$ 86 bilhões. É a 3ª em valor de mercado, atrás apenas do Bitcoin e do ETH.

    As blockchains com capacidade de registrar NFTs são a base daquilo que se convencionou chamar “Web 3.0”: uma internet na qual você usa cripto para virar dono de coisas virtuais, sejam nacos de metaversos, monstrinhos lutadores ou o que mais inventarem. Daí termos criado o neologismo “cripto 3.0” para o título desta reportagem. Estamos falando das redes de blockchain que vieram depois do Bitcoin, as que permitem registros de propriedade.

    Essas redes funcionam de acordo com a receita que a do Bitcoin criou: quem doa poder de computação para elas se torna minerador, ganha recompensas. Mineradores da blockchain do Ethereum recebem ETHs; os da rede da Binance, BNBs.

    E o que confere valor ao ETH e ao BNB é justamente o fato de que você precisa dessas criptos para usar as blockchains delas. E usam-se as blockchains delas como bilhete de entrada para os tais metaversos – lugares que, goste-se ou não deles, atraem gente pra dedéu.

    Isso torna as cripto da Web 3.0 algo com algum valor intrínseco, aquilo que o Bitcoin não tem. Uma inovação, de fato, mas que também tem muito de mania especulativa. É o que vamos ver agora.

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    Apps de DeFi concedem empréstimos automáticos para operações de alavancagem. A porta de entrada para eles é a carteira virtual MetaMask, cujo símbolo é uma raposinha. (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)

    DeFi

    Nem só de NFTs vive a Web 3.0. Outra possibilidade que ela abre é a das “finanças descentralizadas” – DeFi, no acrônimo em inglês.

    O melhor exemplo de DeFi é a Compound, uma espécie de banco que concede empréstimos em cripto. A grana para os empréstimos vem dos clientes que depositam suas criptos lá em troca de juros, como acontece num banco comum. Só que não há gestores humanos. É tudo via inteligência artificial mesmo.

    Para abrir uma conta, não precisa de documento. Basta uma carteira digital. A mais conhecida hoje é a MetaMask: uma extensão do Chrome que se conecta à Compound, e à maior parte das outras DeFis. Trata-se de um Open Banking elevado ao cubo – abriu o site da Compound e ele já reconhece a carteira digital. Então puxa os cripto-dinheiros que estiverem ali, caso você autorize.

    A MetaMask faz esse meio de campo, mas as DeFis devem sua existência a outro personagem do universo cripto: as stable coins – moedas eletrônicas que os emissores mantêm em paridade eterna com o dólar.

    A maior entre elas é o Tether: US$ 78 bilhões em valor de mercado. Os criadores dessa cripto dizem manter US$ 78 bilhões de dólares depositados para servir como lastro.

    Ok. Mas para que serve uma cripto atrelada ao dólar? Para você operar em serviços como a Compound, oras. Ela usa a blockchain do Ethereum. Então só aceita stable coins criadas nessa rede.

    É o caso do Tether – e de outras, como o Dai e o TrueUSD. Dinheiro comum, obviamente, não roda em blockchain nenhuma. Mas ganhar dinheiro comum é o objetivo final de virtualmente todos os especuladores do mundo cripto. Então você precisa dessa cripto-versão do dinheiro comum para operar no universo DeFi.

    Os empréstimos lá funcionam assim: você deposita, digamos, US$ 1.000 na forma de Ethereum (0,25 ETH). Essa cripto-grana fica lá de garantia. E te dá o direito de pegar US$ 800 em alguma stable coin. Então você poderá sacar a stable e trocar por dinheiro de verdade nas corretoras, se quiser.

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    Se você contrair um empréstimo assim, vai pagar 4,37% de juro anual. Quem depositou Tethers na Compound ganha 3,01% ao ano. Veja que o spread é camarada comparado aos dos bancos, e os juros são altos para o dólar.

    Também não há tempo predeterminado para o pagamento. Você quita quando bem entender.

    Sua dívida com a Compound fica atrelada ao dólar – protegida das variações das criptos, que sobem e descem todo dia em ritmos alucinantes. Ter débito em cripto é suicídio. Imagine uma dívida que pode subir 1.000% em questão de meses. É por isso, também, que as stable coins existem.

    Só tem um ponto: se os ETHs que você deixou parados lá como garantia desvalorizarem, por conta da variação diária das cotações de cripto, liga-se uma sirene. Caso a cotação dos 0,25 ETH que você colocou caia de US$ 1.000 para US$ 800, o sistema toma automaticamente os ETHs que você deixou de garantia, e dá o empréstimo como quitado.

    Essa é outra característica das blockchains “Web 3.0”. Elas permitem a confecção de smart contracts, “contratos inteligentes”. A coisa de uma operação liquidar-se automaticamente caso a cotação de 0,25 ETH caia abaixo de US$ 800 é um belo exemplo de contrato inteligente.

    Mas… espera um pouco: que sentido faz deixar o equivalente a US$ 1.000 em ETH como garantia para um empréstimo de US$ 800 em stable coin? Pensa bem. Se você quiser US$ 800 na mão, basta vender uma parte dos seus ETHs em qualquer corretora e pronto. Leva um segundo, e ainda sobram umas criptos na carteira. Em suma: deixar mil dinheiros de garantia para pegar 800 é algo aparentemente estúpido.

    Mesmo assim, existem US$ 6,7 bilhões em dinheiro emprestado pela Compound circulando por aí, tudo na forma de stable coins. Por quê? Porque o povo é burro?

    Não, claro. O nome disso é especulação, no sentido mais bruto da palavra. As pessoas fazem o seguinte: deixam Ethereum parado como garantia, pegam as stable coins que receberam e compram mais Ethereum.

    Pois é. Vamos imaginar que o Ethereum dobre de valor no mercado. Nisso, os US$ 800 que você usou para comprar mais ETH terão se transformado em US$ 1.600. Normal.

    Aí você pega US$ 1.000, quita a dívida em stable coin que tem com a Compound, pega de volta o 0,25 ETH que tinha deixado de garantia e pronto: encerra a operação com US$ 600 a mais no bolso.

    Sim. Se esses US$ 1.000 tivessem ficado só na forma de Ethereum, teriam se transformado em “apenas” US$ 2.000 após uma valorização de 100% na cripto. Com a jogada de tomar o empréstimo em stable e quitar depois da alta, o montante final sobe para R$ 2.600. É para isso que o pessoal tem usado as DeFis.

    Imaginar uma alta de 100% não é exagero diante dos resultados mais recentes. Só em 2021 o Ethereum saltou 416% (contra 60% do Bitcoin, o que mostra onde está o hype agora).

    Mas claro: essa mecânica de lucrar com dinheiro emprestado (que o mercado financeiro chama de “alavancagem”) só funciona quando os preços sobem sem parar. Se o Ethereum cair, esquece. O sistema come a sua garantia e você perde dinheiro.

    O curioso é notar que serviços como o da Compound ajudam o Ethereum a subir. Quem toma emprestado para fazer essas jogadas, afinal, compra mais ETHs. E isso infla a demanda pela cripto. Se a demanda cresce, o preço sobe junto, retroalimentando a espiral.

    Ou seja: a alta extraordinária pela qual o Ethereum passou neste ano é, em grande parte, fruto de um círculo vicioso. A especulação via Compound e outras DeFis faz o preço subir; isso gera mais especulação, que cria mais altas, que promovem mais especulação… Temos aí uma bolha clássica. E o destino das bolhas é explodir.

    Outro risco do mundo cripto: é tudo muito novo. Não dá para saber quais moedas e quais redes de blockchain de hoje vão vingar. É como na época da bolha da internet, no ano 2000: apostavam-se quase todas as fichas na Yahoo! e na AOL. Ambas evaporaram. Pode ser que Bitcoin e Ethereum sejam os próximos Yahoo e AOL? Pode.

    Também tem a questão das tarifas. Cada vez que você usa alguma blockchain, precisa pagar uma taxa aos mineradores. Na rede do Ethereum, a rainha da Web 3.0, o nome da tarifa é gas fee – “taxa da gasolina”.

    Bom, este repórter gastou 0,0238 ETH em gas fees ao longo de seu périplo para fazer um depósito na Compound – e testar o serviço. Parece pouco. Não é. Isso deu R$ 540. Foram R$ 112 de taxa para comprar R$ 1.000 em ETHs numa corretora, R$ 62 para transferi-los à carteira da MetaMask mais R$ 420 para enviar a cripto à Compound.

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    O Banco Central do Brasil pretende criar sua própria cripto, o “real digital”, sob uma blockchain capaz de rodar smart contracts. (Tiago Araujo/VOCÊ S/A)

    Detalhe: no fim das contas, depositei o equivalente a R$ 225 (0,01 ETH) lá. E paguei R$ 540 por isso. Ah, para sacar de volta, a taxa era de 0,054 ETH. R$ 1.250. Ou seja: meu 0,01 ETH provavelmente vai passar o resto dos seus dias preso na Compound.

    Foi como vender o carro para comprar gasolina. Se eu tivesse colocado R$ 1 milhão, essas taxas acabariam diluídas, claro. Mas isso não muda a conclusão do teste: as taxas da blockchain do Ethereum inviabilizam a entrada dos pequenos nessa brincadeira.

    Só que também abrem espaço para a concorrência. A Solana, outra rede de blockchain capaz de rodar smart contracts, tenta desbancar a do Ethereum oferecendo taxas de menos de um centavo de dólar por transação.

    Falta popularidade para a Solana no mundo das DeFis, mas a esperança de que um dia ela vire padrão fez o preço de sua cripto, o SOL, subir de US$ 1,80 para US$ 178 em 2021: 9.788%. A rede da Binance também tenta bater a do Ethereum apostando em taxas mais amigáveis. E não falta quem aposte no sucesso dela. Sua cripto, o BNB, decolou 1.286% no ano passado.

    Ou seja: a missão dos especuladores hoje é adivinhar qual blockchain será “a nova rede Ethereum”. Solana e Binance Coin lideram, acompanhadas de perto por outra rede, a Cardano.

    Essa, aliás, tem um objetivo ambicioso: unificar todas as blockchains numa rede única, o que permitiria usar qualquer cripto em qualquer DeFi. E mais. Em tese, uma grande blockchain unificada permitiria a fusão de todos os metaversos em um só. Aí sim teríamos O metaverso, no singular.

    Outro player dessa corrida evolutiva é mais inusitado: as CBDCs, sigla em inglês para “Moedas Digitais de Bancos Centrais”. Vários BCs planeta afora pretendem desenvolver suas próprias criptos e redes de blockchain – a começar pelo nosso, que quer testar uma primeira versão do chamado “real digital” agora em 2022.

    Um cripto-real, sozinho, não serviria para grande coisa. Os cartões de crédito já automatizam qualquer tipo de pagamento, e não precisamos de um substituto para o Pix. Mas num ecossistema em que os registros de propriedade de bens e a moeda coabitassem uma mesma rede de blockchain, a história seria outra.

    Teoricamente, a documentação de um apartamento sairia no momento em que você fizesse a transferência do dinheiro – já que essas duas entidades, o registro do imóvel e a moeda, rodariam sob o mesmo sistema. Comprar uma casa seria algo tão instantâneo quanto adquirir a NFT de um terreno pela blockchain do Ethereum – se o sistema é seguro para quem se dispõe a pagar US$ 2 milhões por uma gleba virtual, talvez também seja no universo dos imóveis reais.

    Para investir em ações, você não teria de abrir conta numa corretora. Bastaria entrar no site da corretora. Ela reconheceria sua carteira digital e você começaria a operar na hora – igual acontece na Compound.
    E fica a ironia. Um sistema criado para dar uma rasteira nos bancos centrais está em vias de ser apropriado por eles. Trata-se de um movimento que tem o poder de tornar as criptos e as redes de blockchain de hoje obsoletas, pois os Estados nacionais são um concorrente com potencial avassalador.

    E isso não seria nada bom para quem aposta suas economias no mundo cripto de agora. Por outro lado, as CBDCs podem, sim, tornar o mundo financeiro mais simples; e a vida, menos burocrática. Tudo graças a rebeldes geniais que só queriam criar uma moeda para chamar de sua. Assim caminha a humanidade: a passos tortos, mas adiante.

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