É como se a Renner tivesse shorteado suas próprias ações. No short selling, um investidor vende papéis com a ideia de recomprá-los a um preço menor no futuro, embolsando a diferença. Em abril de 2021, a varejista realizou um follow-on, ou seja, vendeu 102 milhões de novas ações, a R$ 39 cada. Colocou no caixa R$ 4 bilhões. Dois anos depois, desembolsou R$ 700 milhões recomprando papéis a R$ 23.
Recompra de ações é parte do jogo de qualquer empresa e funciona como uma espécie de pagamento de dividendos, já que o resultado da operação é ter menos acionistas para dividir o lucro da companhia no futuro. A Apple segue essa estratégia; a Vale também. Por outro lado, é pouco usual que isso ocorra logo após um aumento de capital, quando a empresa diz ao mercado que precisa de recursos para investir em sua expansão.
O caso da Renner é ainda mais peculiar porque a empresa colocou os R$ 4 bi em caixa num momento em que concorrentes de peso estavam fechando aquisições em série. A Soma (SOMA3), dona de marcas como Animale e Farm, comprou a Hering. A Arezzo levou a Reserva, a Baw e mais uma baciada de marcas. De alguma maneira, investidores e analistas de ações esperavam que a varejista gaúcha fosse pelo mesmo caminho.
A frustração do dinheiro aparentemente parado em caixa combinada com uma virada brutal da economia levou as ações da Renner a um mergulho. Mesmo após as recompras, os papéis voltaram a cair, e a LREN3 fechou o mês de maio cotada a R$ 20,04. Dá um tombo de 66% em relação ao pico de R$ 60 alcançado antes da pandemia. E uma queda de 49% na comparação com o valor da ação na época do follow-on. É como se houvesse um desalinhamento de expectativas entre a empresa e os investidores.
Aposta em grande aquisição foi wishful thinking de investidores
Quando a pandemia chegou, a Renner estava voando. A companhia tinha lucrado R$ 1,1 bilhão em 2019, com uma margem Ebitda de 23%. A margem Ebitda é uma espécie de métrica de lucratividade da operação, sem considerar despesas com juros de financiamento e depreciação.
Eram números considerados tão robustos que, do vale de 2014, quando a crise econômica do governo Dilma começa a se instalar, até o auge, a ação valorizou 575%. Ela era um dos “foguetinhos” da bolsa.
O coronavírus abateu a empresa durante o voo, resultado de um combo de mudança de comportamento do consumidor com o fechamento de lojas. A Renner já tinha um e-commerce consolidado, mas que ainda responde por apenas 15% das vendas. E com tanta gente em casa, a demanda pela renovação do guarda-roupa caiu. A receita líquida da empresa tombou 20% entre 2019 e 2020.
Em outras palavras, a pandemia também significava que a Renner teria menos dinheiro entrando no caixa para manter seus planos de expansão. É aí que surge a ideia de levantar recursos na bolsa via follow-on, isso num período em que a taxa Selic mal começava a subir – estava em 2,75% ao ano – e investidores ainda colocavam todas as suas fichas na bolsa.
Na época, a companhia enumerou as possibilidades de uso do dinheiro: financiar a construção do novo centro de distribuição, para atender tanto as lojas físicas quanto as virtuais, acelerar a unificação dos canais online e offline, expandir e reformar lojas e, por fim, aproveitar eventuais oportunidades de aquisições. Foi como se o mercado financeiro tivesse ouvido apenas a última parte, a das aquisições, numa espécie de wishful thinking de que a companhia repetiria a estratégia de negócios das concorrentes.
No fim, a Renner só comprou duas pequenas operações. A Repassa, um brechó online, e a Uello, uma startup de logística especializada em “last mile”, que leva o produto de um centro de distribuição até a casa do cliente. O valor pago nas aquisições não foi revelado, mas elas foram inegavelmente modestas ante a expectativa de que a Renner pudesse levar C&A ou Marisa, duas concorrentes de peso e em situação financeira delicada.
Grandes aquisições não eram o foco da companhia, explica o CFO da Renner, Daniel Martins. “Aquilo a que nos propusemos, a gente seguiu. Aquisição era apenas uma das possibilidades”, afirma.
A estratégia de crescimento orgânico permitiu à companhia preservar caixa: mesmo após as recompras de ações, a empresa fechou o primeiro trimestre com R$ 2,76 bilhões em caixa, acima dos R$ 2,3 bilhões de dívida bruta. É uma posição privilegiada em comparação a suas concorrentes.
Mesmo assim, de alguma maneira investidores seguiram contrariados. Isso num momento em que o varejo como um todo passou a sofrer com inflação, inadimplência… e com a Shein.
Inspiração chinesa
A pandemia pode ter ficado no retrovisor, mas deixou danos permanentes no varejo. Quando a Renner finalmente esperava recuperar sua rota de crescimento, a inflação aumentou seus custos ao mesmo tempo em que ceifou a capacidade de consumo de uma parcela importante de seus clientes.
A varejista atende uma camada de renda entre A-, B e C, o que, nas contas da companhia, representa ⅔ do mercado consumidor. Mas, diferentemente do público de Arezzo e Soma, esse consumidor ainda depende do crédito e fica mais vulnerável em períodos de alta de preços e de juros.
Para trazer a receita de volta aos eixos, a empresa precisou oferecer mais descontos do que o esperado nos produtos. E a rentabilidade diminuiu. A inadimplência na Realize, a financeira por trás dos cartões Renner, saltou, e a companhia precisou fazer mais provisões para cobrir calotes. O juro alto, por fim, dificulta ainda mais o pagamento dos débitos em atraso.
As vendas no primeiro trimestre deste ano, quando comparadas com o mesmo período de 2022, subiram tímidos 2,2%, enquanto as despesas operacionais avançaram 8,8%. O resultado foi um lucro 75,6% menor e margem ainda mais apertada.
A dificuldade de recuperação acontece num cenário em que gigantes asiáticos como a Shein continuam a ameaçar o mercado, com preços baixos e mais compatíveis com o orçamento apertado da população. A Shein alcançou um faturamento de R$ 8 bilhões no Brasil em 2022, equivalente ao resultado da C&A, e próximo aos R$ 13,2 bilhões que a própria Renner apurou no período.
A expectativa da Renner, afirma Martins, é que o desequilíbrio tributário que existe hoje entre as varejistas nacionais e estrangeiras seja resolvido, e a vantagem das asiáticas no mercado diminua. O plano atual do governo é que e-commerces internacionais recolham o imposto em seus países de origem, evitando o enrosco da cobrança na chegada – que acabava deixando parte das entregas isentas de tributo.
Para além da concorrência de preços, a Renner afirma se inspirar na parte inovadora do negócio da Shein: a companhia opera num esquema “ultra-fast-fashion”. Em questão de dias, consegue identificar uma tendência de moda, via redes sociais, fabricar o produto e vender a preço de banana.
A Renner pretende replicar uma parte desse modelo para alavancar vendas. Hoje, 20% do portfólio pode ser renovado em até 30 dias. O plano é que esse percentual salte para 35% a 40%, e que a maior parte dos produtos esteja disponível entre 10 a 20 dias.
Mas isso vem com custos indiretos: dois dos principais problemas da indústria da moda, ainda mais presentes no segmento fast fashion, são o impacto ambiental e social. Do lado ambiental, está a produção de resíduos, o lixo das roupas não vendidas e descartadas, ou que foram vendidas, mas tiveram pouco uso porque eram “modinha”. O segundo problema passa pelas condições de trabalho na indústria têxtil, que tende a se agravar com os prazos mais exíguos de produção.
A estratégia parece ir na contramão de boas práticas ESG, segmento em que a Renner se destaca. Martins nega o conflito.
“Não estamos falando de querer replicar o modelo. Quando a empresa consegue produzir o que o consumidor quer, com reatividade, há menos desperdício, menos markdowns [descontos fora do planejado], gera menos sobras e menos estoque. Isso não é contraditório [com compromissos ESG].”
O Bank of America considera a decisão acertada. “As iniciativas deverão permitir-lhe responder mais rapidamente à evolução das preferências, evitando simultaneamente a concorrência”, escreveram os analistas do banco ao elevar a recomendação do papel para compra. O preço-alvo é de R$ 24 – upside de 20% sobre a cotação ao fim de maio (R$ 20). O Itaú BBA vai na mesma direção, com alvo de R$ 25, enquanto o Goldman Sachs é mais otimista, e vê a ação a R$ 30.
Parte desse sucesso, porém, depende da recuperação das margens. E isso passa pelo e-commerce.
Olhadinha
Ao longo dos anos, consolidou-se a imagem de que o online era mais barato para as empresas do que lojas físicas, já que não há custo de salários dos vendedores nem o aluguel das lojas. Mas a operação de e-commerce da Renner é menos rentável do que as lojas físicas. A chave dessa resposta está no custo de aquisição de clientes e nas despesas com logística.
No varejo físico, uma parcela das vendas acontece apenas porque a loja está em uma localização estratégica. O consumidor entra para dar uma “olhadinha” que se converte em venda. Uma segunda estratégia clássica da Renner sempre esteve atrelada ao cartão, cujos boletos precisavam ser pagos diretamente na loja, fazendo com que o cliente voltasse uma vez por mês. Hoje, há a possibilidade de pagamento online ou em lotéricas.
A estratégia do passado ajuda a explicar por que é tão difícil fidelizar clientes no online. O shopping do e-commerce é o Google, e não há garantia alguma de que o consumidor chegue até sua loja sem anúncios. Os custos com marketing digital, não só no buscador, mas em redes sociais em geral, tornam os clientes online menos rentáveis.
O segundo desafio é a logística: por uma questão de escala, é mais barato abastecer lojas do que fazer o produto chegar de porta em porta. Daí por que o foco do investimento no centro de distribuição era a unificação dos estoques que atendem tanto lojas físicas quanto e-commerce. O centro estará em funcionamento pleno em 2024, quando os benefícios devem ser colhidos de forma mais consistente.
Do lado dos custos de marketing, a Renner decidiu caminhar rumo a programas de fidelidade, ainda em fase de teste em lojas selecionadas, e conta digital, algo que outras varejistas já vêm fazendo há tempos. A expectativa é que isso reduza o volume de gastos com marketing digital, garantindo que, no longo prazo, clientes de lojas físicas e e-commerce se tornem igualmente rentáveis.
De acordo com o Itaú BBA, o mais provável é que investidores esperem pela melhora dos números antes de voltar a apostar na Renner. “Acreditamos que o mercado preferirá esperar por evidências empíricas de sucesso desses projetos antes de precificá-los”, afirmaram os analistas.
Dá para ver nos indicadores: as ações nunca estiveram tão baratas. O P/L da Renner (divisão do valor de mercado da empresa pelo lucro em 12 meses) está em 16. Em 2019, chegou a 40. Bancos calculam que o indicador deve caminhar para 18, perto da média histórica. Já o P/VPA, que é a divisão do valor de mercado pelo patrimônio líquido, está em 1,96, quando historicamente ele ficava acima de 5.
Esperar pela recuperação antes de comprar um papel é um dos sinais de conservadorismo na bolsa. A ação pode se valorizar antes de os resultados financeiros melhorarem, limitando o potencial de ganho. Ir pelo caminho mais seguro, porém, aumenta a capacidade de atravessar crises, o que é sempre prudente. A Renner que o diga.