Qualidade, sozinha, não justifica os preços exorbitantes dos itens de luxo. Quando alguém topa desembolsar R$ 2.200 numa presilha de cabelo da Miu Miu ou R$ 18.500 na touca em forma de pato da Burberry, não é só pelo requinte dos materiais ou o caimento da peça. Tem a ver com o que aquele objeto comunica: poder aquisitivo.
Serve também para os mais discretos. Popularizado pela série Succession, o termo quiet luxury serve para designar uma tendência de consumo entre os bilionários: tornar a ostentação tão sutil que só é reconhecida pelos olhares treinados de pessoas da mesma classe social. É o caso dos bonés Loro Piana de R$ 2.100 ou as camisetas básicas de R$ 2.000 da Brunello Cucinelli – marca favorita de Mark Zuckerberg.
Seja no glamour chamativo ou na elegância recatada, consumir luxo é um esforço para se distinguir – uma característica evolutiva, presente desde sempre na humanidade. Isso dá às marcas premium um privilégio almejado por todas as empresas da Terra: habitar o imaginário das pessoas. Quando seus produtos são objetos de desejo, você ganha a liberdade de precificá-los como bem entender.
Segundo uma pesquisa da empresa de dados Edited, os produtos de luxo estão em média 25% mais caros desde 2019 – 5 pontos percentuais acima da inflação do dólar no período. Num horizonte mais longo, em certos casos, a alta é surrealista. Uma pesquisa do New York Times mostrou que uma bolsa da Chanel vendida por US$ 1.650 em 2008 hoje custa US$ 10.200 – se tivesse sido ajustada apenas pela inflação, ela sairia por US$ 2.360.
O setor vem há anos batendo recorde atrás de recorde em vendas, e caminha para terminar 2023 com os melhores resultados de sua história. A consultoria Bain & Company estima uma receita total de US$ 1,64 trilhão para o mercado de luxo este ano – uma alta de US$ 175 bilhões em relação a 2022 (12%).
Isso num período em que o mercado financeiro viveu assombrado pela possibilidade de uma recessão global, e que os consumidores nos EUA e Europa continuaram sujeitos a inflação e juros bem acima do normal.
Não à toa, na bolsa de valores, companhias do segmento de luxo costumam ser vistas como resilientes. Pelo seguinte: os consumidores da classe A+ sofrem bem menos com os altos e baixos da economia. Seu poder de compra não diminui em períodos de inflação alta. E, como não dependem de crédito para fazer suas compras pessoais, ficam menos reféns dos ciclos de aperto monetário.
Só que, nos últimos meses, nem todas as ações do setor estão refletindo a perspectiva de melhor-resultado-da-história. O S&P Global Luxury Index, composto por 80 empresas de capital aberto voltadas a produtos de alto padrão, cai 15% desde o seu pico histórico, alcançado em julho.
Entre os dez maiores participantes do índice, temos três montadoras (Ferrari, Mercedes-Benz e Tesla) e duas fabricantes de bebidas (Pernod-Ricard e Diageo). No ramo da moda, a Kering (dona de Gucci, Yves Saint Laurent e Balenciaga). No de relógios e acessórios, a Richemont (que controla Cartier, Panerai, Jaeger-LeCoultre, Montblanc).
A companhia com mais peso ali é a Hermès, tradicional grife francesa fabricante das bolsas Birkin – comercializadas por até US$ 450 mil e com lista de espera. Depois, vem a LVMH, holding controladora de algumas das marcas mais famosas do mundo do luxo: Louis Vuitton, Möet, Hennessy (as quatro cujas iniciais formam a sigla da empresa), mais Dior, Givenchy, Bulgari, Tiffany & Co… Trata-se da maior empresa da França e a segunda mais valiosa da Europa.
Curiosamente, essas ações passam por períodos bastante distintos: enquanto os papéis da LVMH se mantêm estáveis (leve alta de 2% no ano), os da Hermès decolam 32%; as ações da Ferrari saltam 65%, enquanto as da Mercedes encolhem 8%.
Para entender essas movimentações, precisamos antes recapitular o desempenho do mercado até aqui. Vejamos.
I want it, I got it
O início da pandemia foi um baque para o mercado de luxo. Em 2020, o setor sofreu sua primeira contração desde 2009. Durante a quarentena, o comportamento dos consumidores mudou drasticamente: antes acostumado a comprar em lojas físicas durante viagens a turismo, o público passou a consumir online e localmente. Pego de surpresa, o mercado não se adaptou a tempo de evitar o encolhimento de 23% naquele ano.
Mas a recuperação veio de jatinho. Em 2021, com o mundo ainda sob restrições da covid, o mercado de luxo já havia voltado aos níveis pré-crise. Em 2022, a reabertura chegou acompanhada de um boom para o setor: 95% das marcas terminaram o ano com alta nos lucros, de acordo com um levantamento da Bain & Company.
O mercado de luxo caminha para terminar 2023 com receita total de de US$ 1,64 trilhão, alta de 12% em relação a 2022.
Nesses últimos dois anos, o segmento de itens pessoais – que inclui roupas, maquiagens e joias – viu uma explosão na demanda de ambas as categorias de sua clientela.
Essencialmente, existem dois tipos de consumidores de itens de luxo.
1) Os compradores frequentes: pessoas ricas para as quais o luxo é a regra no guarda-roupa, nos móveis de casa e na garagem.
2) Os esporádicos, chamados no jargão do mercado de aspiracionais. São membros da classe média que adquirem produtos “entry-level” das marcas cobiçadas.
Apesar de não serem a clientela principal, os aspiracionais correspondem a uma parcela significativa dos consumidores do setor. Nos EUA, uma pesquisa do GlobalData mostrou que pessoas com renda anual de US$ 50 mil (uns US$ 4 mil por mês, pouco mais de três salários mínimos por lá) são responsáveis por 27% do consumo de luxo no país.
Diferentemente do que acontece no topo da pirâmide, a capacidade de compra dos consumidores aspiracionais flutua de acordo com a saúde da economia. O que justifica, então, o aumento dos gastos durante a crise da covid? Uma possível explicação é a seguinte: o dinheiro que a classe média normalmente gastaria em viagens, restaurantes e passeios ficou ali guardadinho durante os meses de quarentena. A reserva serviu para financiar os impulsos consumistas nas lojas de luxo.
Também tem um fator cultural: internet afora, a moda virou tópico universal entre os mais jovens. Em vídeos com mais de 500 mil curtidas, pessoas respondem à pergunta “quanto custa o seu outfit?” – apontando cifras de muitos “k de dol” (milhares de dólares, no jargão desse povo). No TikTok, trends promovendo a estética “old money” e “quiet luxury” popularizaram o estilo discreto-mas-luxuoso de ultrarricos.
Por essas, a gen Z tem entrado no mundo das grifes mais cedo do que as gerações anteriores, segundo a análise de mercado da Bain & Co. As autoras da pesquisa apontam que a demanda dos millennials e gen Zs foi o grande motor do desempenho de 2022.
Na estratosfera
A fartura se estendeu para 2023. No primeiro semestre do ano, a LVMH reportou uma alta de 17% em suas vendas na comparação anual – mais que o dobro do projetado pelos analistas. O resultado causou um frenesi de otimismo que elevou as ações da companhia para sua máxima em todos os tempos, transformando-a na primeira empresa europeia a alcançar um valor de mercado superior a US$ 500 bilhões (mais tarde, ela perderia o posto de empresa mais valiosa do continente para a farmacêutica Novo Nordisk, dona do Ozempic).
A LVHM opera 75 marcas, de vários segmentos: bebidas, moda, cosméticos, perfumes, hotéis. Elas também abarcam estratos de renda diferentes – tem a Sephora e a Fenty Beauty, populares entre a classe média, mais Céline e Loro Piana, ícones do quiet luxury.
À frente desse megazord, Bernard Arnault é diretor executivo da LVMH desde 1989. No início deste ano, a alta nas ações da empresa transformou-o por um breve período na pessoa mais rica do planeta (atualmente, ele fica atrás apenas de Elon Musk).
Segunda companhia mais valiosa da França, a Hermès tem uma estratégia de negócios diferente. Ela foca em uma marca única, voltada apenas para a alta renda.
Do meio do ano pra cá, esse modelo tem entregado resultados melhores. No terceiro trimestre, a Hermès reportou alta de 7,3% no lucro em relação ao ano anterior, com aumento de 17% nas vendas. Trata-se de uma desaceleração no crescimento: no segundo tri, elas haviam aumentado 28%. Só que, ainda assim, é melhor do que as rivais. Por isso, desde a divulgação de resultados, em outubro, as ações da Hermès saltaram 17%.
Juros altos não afetam o poder de compra da classe A+, já que ela não precisa de financiamentos.
Já a LVMH deixou a desejar. A alta foi de 9% nas vendas do terceiro tri, contra expectativa de +10%. Veja: não é que o desempenho esteja ruim – é só que a régua, até agora, estava alta demais. A quebra de expectativa fez as ações da companhia caírem 4% desde outubro (e 21% desde o pico de julho).
A desaceleração está relacionada à queda na demanda de consumidores dos EUA e Europa – principalmente entre as gerações mais jovens. Ao que parece, o cenário de juros altos e inflação persistente fez os compradores aspiracionais frearem seus gastos. Nos EUA, a queda nas vendas gerais no mercado de luxo foi de 8% quando comparada a 2022.
O fator China
EUA e Europa são as regiões com o mercado de luxo mais bem consolidado no mundo. Aí tem as áreas em rápida expansão: o oriente médio (Arábia Saudita e Emirados Árabes) e o leste asiático (Japão, Coreia do Sul e, em especial, a China).
Nos últimos 30 anos, o crescimento relâmpago da economia chinesa transformou o país em um importante polo para o mercado voltado à alta renda. Hoje, a China é uma máquina de produzir ricos: são 5,2 milhões de famílias vivendo com patrimônio de US$ 900 mil ou mais. Também é o país com o maior número de bilionários no mundo. Segundo a Hurun Global Rich List de 2023, são 969 bilionários vivendo atualmente ali – contra 691 nos EUA, o segundo colocado.
Com isso, o país passou a influenciar o sucesso das marcas de luxo ao redor do mundo. “Temos todos os motivos para estarmos otimistas em relação à China”, disse Bernard Arnault no início do ano. Durante a divulgação dos números do primeiro trimestre, a LVMH atribuiu o resultado bombástico à reabertura chinesa (depois de a dura política local de covid-zero fechar as fronteiras e comércios).
Imediatamente após a reabertura, o país viveu um boom no consumo de luxo – que ajudou a mascarar a desaceleração de resultados no ocidente. A expectativa era que o ritmo continuasse.
Mas não foi o que rolou. Ao longo de 2023, o país passou a dar sinais de dificuldade para recuperar a velocidade de crescimento pré-covid, com uma crise imobiliária ameaçando a saúde financeira da economia e um alto nível de desemprego entre jovens sinalizando fragilidade do mercado de trabalho – em agosto, último mês em que o dado foi divulgado, a desocupação de pessoas entre 18 e 24 anos chegou a 21%.
A queda no consumo chinês foi o que puxou a desaceleração do crescimento da LVMH: no mercado asiático, as vendas subiram 11% no terceiro tri, contra 23% no período anterior.
E não é só na LVMH: para todo o mercado de luxo, o fim da euforia pós-covid deve esfriar o avanço. A Bain & Co estima que 70% das marcas terminarão com crescimento positivo este ano – contra os extraordinários 90% de 2022.
Mete marcha
No mercado dos carros de luxo, a banda toca num compasso diferente. Esqueça os consumidores aspiracionais. A Ferrari Roma Spider, modelo “de entrada” da montadora italiana, sai por US$ 243 mil nos EUA (R$ 1,2 milhão).
A palavra que rege esse segmento é exclusividade. E a Ferrari sabe se aproveitar disso. No terceiro trimestre, ela atribuiu seu salto de 46% nos lucros anuais (para € 332 milhões) ao crescimento da personalização de seus carros. Trata-se das opções de acabamento de pintura, material dos bancos e outros detalhes que o cliente pode escolher no momento da compra – regalia que pode aumentar o valor do veículo em algumas centenas de milhares de dólares.
Segundo o CEO Benedetto Vigna, o aumento nas vendas de modelos mais onerosos (como a Daytona SP3, dez vezes mais cara que a Roma Spider) também tem ajudado no desempenho da marca. Desde a divulgação dos resultados, as ações da Ferrari subiram 17% na bolsa de valores italiana.
Algumas empresas do alto luxo faturam vendendo ítens menos caros para a classe média, mas estão perdendo esse filão.
Mas outras montadoras de alto padrão não estão imunes ao esfriamento da demanda. Em outubro, o CFO da Porsche, Lutz Meschke, disse que a alta nos juros “deixou clientes bastante relutantes [em adquirir] um novo produto”. No terceiro tri, a companhia registrou alta de 9% nos lucros anuais (€ 5,5 bi), também apoiada nas vendas dos modelos mais caros. Só que, na China, elas caíram 12%. Em Frankfurt, as ações da Porsche (que é controlada pela Volkswagen) caem 11% no ano.
A Mercedes vem utilizando a mesma narrativa para justificar a queda de 4% nas vendas do terceiro trimestre. Segundo ela, o mercado tem sido especialmente desafiador no ramo de veículos elétricos. Enquanto, ao longo do ano, concorrentes como Ford e Tesla reduziram seus preços para atrair mais compradores, a Mercedes optou pela estratégia de priorizar a margem de lucro em detrimento do volume de vendas. Mas os preços salgados parecem estar distanciando potenciais clientes.
Detalhe importante: a Porsche e a Mercedes também vendem modelos para os compradores aspiracionais. O Porsche Macan, veículo mais barato da marca, começa em US$ 57 mil nos EUA. O Mercedes Classe A, modelo mais modesto deles, em US$ 34 mil. Enquanto isso, a Ferrari paira como uma Hermès das montadoras – protegida das pressões econômicas que afligem os menos endinheirados.
O luxo na B3
Boa parte das companhias que citamos aqui estão listadas na Europa – como LVMH e Hèrmes, na França; e Porsche e Mercedes, na Alemanha – e não têm BDRs à venda no Brasil. Mas todas contam com ADRs de boa liquidez na bolsa americana, facilmente acessível via corretoras como a Avenue ou o serviço internacional da XP. Por esse caminho, também dá para encontrar o ETF temático LUXX, que acompanha o desempenho do S&P Global Luxury Index.
Algumas empresas da B3 também têm como foco o público de alta renda: caso das varejistas de moda Soma (SOMA3), Arezzo (ARZZ3) e Track&Field (TFCO4), além da joalheria Vivara (VIVA3) e da construtora JHSF (JHSF3).
Andreas Ferreira, analista de varejo da Mantaro Capital, explica que essas companhias costumam desempenhar melhor do que as concorrentes voltadas para os públicos de renda mais baixa. Por uma lógica semelhante à do luxo internacional: os mais ricos dependem menos de crédito para efetuar suas compras, e perdem menos poder de compraaquisitivo em tempos de inflação elevada.
A Track&Field, por exemplo, não ouviu falar em tempo ruim este ano. No terceiro trimestre, a varejista de roupas esportivas registrou alta de 19% no lucro, para R$ 94,7 milhões. Em um ano, suas ações sobem 22%. A Vivara também é líder no seu segmento, e divulgou um crescimento de 12,5% nas vendas durante o terceiro tri. Em 12 meses, a alta é de 28% nos papéis VIVA3.
Só que nem tudo são flores. O Grupo Soma, dono das marcas de luxo Farm e Animale, reportou lucro líquido de R$ 98,8 milhões entre julho e setembro, queda de 3,2% em relação ao mesmo período do ano passado. Foi melhor do que suas concorrentes da moda, e acima das expectativas dos analistas. Mas o resultado mostra que a companhia não está totalmente protegida da tendência de queda das varejistas – que vêm sofrendo com a alta dos juros. No release de resultados, a companhia enfatizou o “período de desaceleração” e indicou uma “abordagem cautelosa”.
Mais uma amostra de que, mesmo com a resiliência natural desse tipo de empresa, são poucas as que ficam realmente imunes aos vendavais da economia.